SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após temporadas lotadas no Sesc Avenida Paulista e no Teatro de Contêiner, no bairro Santa Efigênia, região central de São Paulo, a Cia. Mungunzá de Teatro se prepara para levar o espetáculo “Cena Ouro – Epide(r)mia” para o festival C´est Pas Du Luxe, em Avignon, na França.
Serão duas apresentações na última semana de setembro, a convite da curadoria, que assistiu à peça no Festival Cultura e Pop Rua, realizado em agosto do ano passado pelo Museu da Língua Portuguesa e Sesc SP. O festival francês existe desde 2008 e apoia projetos artísticos que constroem pontes entre as artes e pessoas em situação de rua.
O coletivo teatral fez a última apresentação de “Cena Ouro” no Teatro de Contêiner na terça-feira (9) e, no final, anunciou que procura ajuda para viabilizar a viagem de 19 integrantes para Avignon, com previsão de R$ 450 mil em gastos.
Presente no encerramento da temporada, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) iniciou a campanha ao postar nas redes sociais um pedido de auxílio para a viagem.
“A companhia mostra histórias, cenas, sentimentos e vivências da comunidade do fluxo, na região da Cracolândia. Os personagens vivem muitos dramas, com momentos de muita dor e tristeza, mas também de muita alegria”, escreveu.
Suplicy assistiu ao espetáculo sentado próximo a um dos moradores da região, um homem que marcou presença em toda a temporada de “Cena Ouro” e no último dia gritou “vai, Corinthians” em várias ocasiões, sem sofrer nenhuma repressão.
Em cena, artistas da companhia se juntam a sete não atores, agentes da região central que já passaram por diferentes situações de vulnerabilidade e revelam vivências que não costumam aparecer quando o assunto é o território da Cracolândia.
Entre eles está Nego Bala, cantor que morou na chamada “boca do lixo”, é ex-interno da Fundação Casa e gravou a música “Sonho” com Elza Soares. No espetáculo, o artista fala sobre a importância da leitura para ele, especialmente da obra de Paulo Freire.
“Cena Ouro” tem cenas que causam grande impacto, como o número em que Laurah Cruz, uma mulher trans, artista e redutora de danos, manifesta sua solidão em uma interpretação visceral de “Lanterna dos Afogados”, de Herbert Vianna; ou a imagem tocante de corpos escondidos por cobertores de isolamento, prateados e dourados, sob pingos de chuva.
A montagem é também uma oportunidade de trabalho para artistas da região central que enfrentam marginalização e violência. Laurah, por exemplo, foi espancada e passou por um longo período de recuperação antes de participar do processo de preparação do espetáculo.
“Desistiram de mim a vida inteira. E isso começou dentro da minha casa”, afirmou a artista ao podcast “Emoção Criativa – Cena Ouro”, em uma síntese das emoções que leva para o palco. “A rua trouxe a liberdade de ser quem eu sou”.
“Constatamos na prática o fazer teatral como insumo de redução de danos e opção de geração de renda em um território com altos índices de vulnerabilidade social”, dizem Léo Akio e Marcos Felipe, atores e produtores da Cia. Mungunzá.
“Embora todos os encontros do processo criativo fossem direcionados para a criação de um espetáculo teatral colaborativo, os ensaios proporcionaram uma vivência pedagógica ampliada, pois todos passaram por transformações profundas relacionadas ao comprometimento, a autonomia e ao autoconhecimento.”
A Cia. Mungunzá já havia montado o espetáculo “Epidemia Prata”, uma visão dos atores sobre pessoas que conheceram nos arredores do Teatro de Contêiner. Cinco anos depois, alguns desses personagens reais subiram ao palco em “Cena Ouro”, inclusive questionando a interpretação artística de suas vidas.
“Nos deparamos com o conhecimento que estava do outro lado. São travestis, corpos negros, ex-frequentadores e frequentadores do fluxo da Cracolândia com uma potência artística incrível. Para muitos é ali que estão amigos, afeto, relações e a própria sobrevivência”, diz Georgette Fadel, uma das diretoras ao lado de Cris Rocha e Tânia Granussi.
Na França, as apresentações terão legendas e uma explicação inicial sobre a Cracolândia -explicação essa que no Teatro de Contêiner é substituída por persianas que abrem durante o espetáculo e mostram o fluxo no entorno.
CRISTINA CAMARGO / Folhapress