Mandamos muita gente de volta para casa, diz associação que ajudou Antonio Cicero a morrer

BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Não há um endereço, não dá para chegar de repente, nem ficar sócio na hora. “Não é uma clínica”, diz o longo email enviado ao repórter. “Não há médicos, enfermeiros, pacientes ou instalações para abrigá-los. Isso é uma fantasia criada por tabloides.”

O que é a Dignitas então? “É uma associação sem fins lucrativos, que ajuda a viver e defende o direito de morrer. É um grupo de direitos humanos, que trabalha pela dignidade humana.” A instituição auxiliou o poeta e compositor Antonio Cicero a cometer suicídio, no mês passado, na Suíça.

Apesar de repetir com ênfase que “não é uma clínica”, auxilia seus integrantes, estrangeiros em geral, a encontrar um lugar apropriado para o suicídio assistido. O importante não é tanto onde ele se dá, mas como.

Dignitas é o nome mais antigo e reconhecido na área. Foi criada por um jornalista que virou advogado, Ludwig Minelli, nos anos 1980, na esteira de uma decisão judicial que redundou a permissão do suícidio assistido na Suíça. Uma interpretação do Código Penal do país abriu caminho para permitir o ato, desde que não motivado por razões egoístas.

Ou seja, é preciso que haja altruísmo, quase sempre explicitado pelo fato de o interessado estar em grande sofrimento, com doença incurável ou incapacitante.

A associação prefere descrever o procedimento como suicídio acompanhado. Quem vai tirar a própria vida o fará por vontade própria, consciente de seu ato e após ouvir opiniões médicas. A associação faz também um trabalho de prevenção ao suicídio em geral. Um terço das ligações feitas à entidade vira aconselhamento.

Na Suíça, existem outros dois grupos que fazem trabalho semelhante, Lifecircle e Pegasos. “É a alternativa para quem não é cidadão dos países que já permitem o procedimento, como Holanda, Espanha e Portugal”, afirma Luciana Dadalto, advogada bioeticista que pesquisa a autonomia no fim de vida.

Já são oito países na Europa com algum tipo de legislação nesse sentido. Neles, o suicídio assistido e a eutanásia, em que o procedimento é feito por um médico, ocorrem dentro dos sistemas de saúde. França discute projeto de lei neste momento, e o Reino Unido acaba de aprovar a sua versão em primeira votação no Parlamento.

As associações suíças, desse modo, restam como alternativa para grande parte do planeta, brasileiros incluídos. “Mandamos muita gente de volta para casa”, pondera a Dignitas. É preciso se tornar membro, pagar anuidade e encarar uma série de brochuras para se tornar integrante. Tudo isso garante a recepção do interessado, não o procedimento.

“Há uma série de etapas a seguir. É preciso chegar 72 horas antes à Suíça, trazer um relatório médico, se submeter à opinião de outros dois médicos suíços, às vezes mais do que isso”, conta Dadalto. Segundo a Dignitas, “o indivíduo precisa ser capaz de administrar o fármaco letal sozinho. Precisa estar com plena capacidade de julgamento. Mais importante, não estará sozinho, mas ao lado de quem pode ajudá-lo e também de quem lhe é próximo. Tudo isso demanda cuidadosa preparação”.

A associação provê um local, que não é seu escritório em um subúrbio de Zurique, para o procedimento. Normalmente um flat ou residência alugada. Lá, o associado toma primeiro um remédio para evitar náusea, pois o fármaco letal é muito forte. Ingerida a substância, a morte ocorre entre 3 e 5 minutos. “Aí tem que chamar a polícia”, explica a pesquisadora.

O registro policial é obrigatório para demonstrar que o evento foi voluntário. “Tinha uma época que a Dignitas filmava o procedimento. As outras associações ainda filmam, para provar que ninguém foi coagido”, diz. Desde o advento da prática no país, protocolos foram sendo criados para evitar dúvidas ou confusões.

Além de ter capacidade física para tomar o fármaco letal sem ajuda, a pessoa precisa conseguir se expressar e entender uma das línguas oficiais locais (alemão, francês, italiano e romanche) ou inglês. A barreira já foi um impeditivo forte para estrangeiros, mas vem sendo superada pelo uso de aplicativos de tradução.

Cicero, que tinha Alzheimer, fez uma opção antecipada pelo suicídio assistido. Ele não cumpriria os requisitos em um estágio mais avançado da doença.

“Está muito claro que ele queria que a gente debatesse o assunto. Não teria deixado aquela carta e pedido sua divulgação se não fosse um pouco essa a ideia”, afirma Dadalto, sobre o fato de Cicero ter comentado sua opção em uma publicação póstuma. “Foi um chacoalhão”, diz a pesquisadora, que lamenta o pouco espaço dado ao assunto na agenda conservadora adotada pelo país nos últimos anos.

A Dignitas não fala em custos. Estima-se que o procedimento todo, da chegada ao escritório à cremação, gire em torno de 10.000 francos suíços (cerca de R$ 67.000). A cifra não inclui a inscrição (220 francos suíços) e a anuidade (80 francos suíços). A associação aceita doações para atender membros sem recursos.

A entidade fechou 2023 com 13.775 associados; 250, ou 3%, foram acompanhados no suicídio. Ao longo dos anos, a média se mantém mais ou menos nesse patamar. Menos da metade dos que solicitaram o procedimento chegou até o final.

JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress

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