Paraguaio ‘Eami’ faz retrato delicado da resistência indígena

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Passaram-se alguns anos entre o primeiro contato de Paz Encina com os ayoreo-totobiegosode e a conclusão de “Eami”, realizado na região do Chaco em meio ao avanço do desmatamento e às lutas contra a invasão de seu território pelos “coñones”, ou aqueles que “não entendem o mundo”.

Foi só depois de conhecer as lideranças, ouvir as demandas locais e entender as tensões em jogo que a cineasta decidiu rodar ali seu mais recente longa-metragem, exibido no Festival de Roterdã e na Mostra Internacional de São Paulo.

O filme chega às telas como uma obra rara e algo estranha, impressionante tanto pela força política quanto pela ousadia estética, que tenta aproximar o público de modos de ver e de pensar dos indígenas.

Escrito em colaboração com o documentarista José Elizeche, que trabalha há décadas com os ayoreo, e com Tagüide Picanerai, jovem líder do grupo, o roteiro é organizado em torno de Eami, vivido por Anel Picanerai, uma garota que vive o luto pela perda de seu território, que ela e seu grupo precisam deixar para sobreviver.

A essa estrutura ficcional somam-se registros documentais, imagens e depoimentos ouvidos por Encina no início da pesquisa. Numa mistura entre a ficção e o documentário, a cineasta investe em imagens muito sensoriais, impregnando-se da percepção de tempo e espaço própria aos ayoreo. Materializa-se, assim, uma história que parece contar a origem do mundo -e narrar também os descaminhos que levam à sua perdição.

“Eami” começa com um longo plano fixo, espécie de síntese do filme todo. Ao longo de quase oito minutos, assistimos a formas arredondadas que conseguimos pouco a pouco identificar em meio à penumbra. À luz da manhã, ficam nítidos quatro ovos em um ninho, que voltam a quase desaparecer na noite e, em seguida, se tingem de vermelho quando um incêndio sobrevém nas proximidades.

Esse início do filme funciona como um exercício de calibragem da atenção do espectador. Instaura-se ali um ritmo próprio, um jeito de olhar para a paisagem e de narrar. Ouvimos vozes de crianças e adultos, mas não vemos, no primeiro momento, seus corpos. É a partir do fora de campo que as histórias são contadas, na primeira pessoa do singular, por narradores que se apresentam ora como lagarto, ora como tartaruga, ora como Asojá, mulher-deusa-pássaro.

Acompanhadas por essas vozes, as imagens da floresta, de grande beleza plástica, fazem com que cada elemento da paisagem alagadiça do Chaco tenha força de personagem -a árvore, as folhagens, a terra úmida e até o vento, que anuncia que o mal está perto.

Tamanha beleza não nos distrai diante da realidade dos fatos. Inúmeras tentativas de massacre dos ayoreo, que se recusam a se transformar em “coñones”, mas se veem obrigados a usar roupas, a comer a comida dos brancos, a abandonar seus costumes.

“Somos os mesmos quando perdemos aqueles que amamos?”, indaga Eami em determinado momento. Mais tarde, a questão se transforma: “Quando expulsam os corpos de um lugar, conseguem demover seus espíritos?”.

É um choque o contraste entre a pureza do raciocínio infantil e a tragédia que está acontecendo, descompasso que lembra “Serras da Desordem”, documentário de 2005 de Andrea Tonacci, que conta o massacre de um grupo de ava-canoeiros, no qual sobrevivem apenas um adulto e uma criança, pai e filho.

Num determinado momento de “Eami”, uma casa de joão-de-barro é filmada com gravidade, de modo a sugerir que é a última vez que a vemos. Outra imagem-síntese da permanente sensação de perda da casa de que fala a personagem-título. Seu nome pode significar “monte”, “floresta” ou o mundo todo, servindo principalmente para designar o lugar onde vivem os ayoreo sem contato com os brancos nem com os indígenas que já saíram de lá -a regra é nunca retornar, para evitar o risco de contaminar os isolados.

Nesse ponto, o filme tangencia a questão da imagem dos não-contactados, temática abordada recentemente no documentário “A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge, mas sem jamais tentar aproximar-se do monte.

Pouco a pouco, revela-se o conflito com os menonitas, minoria religiosa originalmente nórdica que se instala em colônias no Chaco paraguaio, para cultivar a terra com base no trabalho dos indígenas.

A cineasta investe sensorialmente nesse contraste, trazendo à tela hipóteses sobre o olhar das crianças indígenas -o andar lento de um jabuti, o voo das aves, o movimento das nuvens- junto com o que vê uma mulher menonita enquanto costura, dispõe porcelanas sobre a mesa ou observa a paisagem por detrás da janela, num plano que lembra o russo Andrei Tarkovski.

No ano passado, durante o festival de documentários Forumdoc, de Belo Horizonte, Paz Encina disse que o processo de realização de “Eami” começou depois de lideranças locais expressarem o desejo do filme, como um pedido de ajuda.

Ela respondeu com um longa que pode ser visto também como um instrumento na luta pelo direito ao território por parte dos ayoreo, feito com alto grau de sensibilidade, comprometimento e precisão estética.

EAMI

Avaliação Muito bom

Quando Nos cinemas

Classificação 12 anos

Elenco Anel Picanerai, Curia Chiquejno Etacoro e Ducubaide Chiquenoi

Produção Paraguai, 2022

Direção Paz Encina

LÚCIA MONTEIRO / Folhapress

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