SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tensão atômica da Guerra Fria 2.0 ganhou um novo capítulo nesta quinta (19), com uma raríssima ocorrência: o teste de mísseis nucleares dos Estados Unidos e da França no mesmo dia.
O alvo político primário é a Rússia de Vladimir Putin, que trouxe a carta nuclear de volta à mesa de vez pouco antes da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022. De lá para cá, em nome de tentar conter o crescente apoio do Ocidente a Kiev, o Kremlin tem naturalizado a ideia de um conflito atômico.
Se no primeiro semestre de 2022 os EUA se contiveram nos testes regulares das armas do apocalipse, isso mudou em junho, quando lançaram de uma só vez quatro mísseis navais Trident 2 D52E. Mas a natureza do episódio desta quinta-feira amplia o quadro.
Os americanos lançaram sua arma principal em caso de guerra nuclear, o míssil baseado em silos Minuteman 3. Ele foi disparado da base de Vandenberg, na Califórnia, em uma circunstância específica: a ordem foi dada por um avião de comando aéreo E-6 Mercury.
Baseado no antigo Boeing 707, o aparelho da Marinha é desenhado nesses casos para acionar os silos em caso de ataque nuclear contra a base em que as construções fortificadas estão localizadas. Se os mísseis em solo sobreviverem, são lançados do ar, com o avião a centenas de quilômetros de distância.
Os EUA operam 400 Minuteman, a perna terrestre de sua tríade nuclear, completada pelos Trident 2 de submarinos e mísseis e bombas lançadas por bombardeiros e caças táticos. Cada míssil pode atingir alvos a até 14 mil km com até três ogivas independentes, com potência individual variando de 10 a 20 vezes a da bomba inaugural da era atômica, lançada pelos americanos em Hiroshima, no Japão.
Ainda mais inusual foi o teste francês de seu míssil M51, disparado do submarino Le Terrible, anunciado pelo ministro Sébastien Lecornu (Forças Armadas). A embarcação é 1 das 4 de propulsão nuclear, usada para lançar esses mísseis balísticos, com alcance estimado em até 10 mil km e capacidade para carregar até dez ogivas, cada uma com potência cerca de sete vezes maior do que a da detonação em Hiroshima.
Foi apenas o 11º teste da moderna arma, introduzida em 2010. O Minuteman, em sua versão atual, está operando desde os anos 1970 e tem mais de 300 ensaios em seu currículo. Toda essa tecnicalidade, contudo, é lateral ante a questão central: as ameaças lado a lado no campo nuclear estão em um nível inédito no mundo. Como disse à Folha de S.Paulo o número 2 da Defesa da Finlândia, novo colega de EUA, França e 28 outros países no clube militar da Otan, o risco de uma guerra nuclear parece bem real.
O teste duplo chama a atenção também no contexto da Guerra Fria 2.0, iniciada pelos EUA contra a China em 2017 e amplificada com o apoio de Pequim a Putin. A França, desde o tempo da Guerra do Iraque (2003), não se alinha automaticamente a políticas americanas, tanto que suas forças nucleares são independentes das da Otan.
No começo do mês, o presidente francês, Emmanuel Macron, fez uma comentada viagem à China, sinalizando independência política de Washington. No embate com Putin, buscou ter uma posição ativa como mediador, sem sucesso como a famosa foto na mesa gigante do Kremlin simbolizou.
Isso dito, em relação à segurança europeia, EUA e França estão do mesmo lado. A sinalização é ainda maior levando em conta a geografia: o Minuteman voou 6.700 km até cair perto das ilhas Marshall, no Pacífico, enquanto o M51 foi lançado no Atlântico, da costa da Bretanha até um ponto entre França e EUA.
Recentemente, Putin anunciou que os chamados torpedos do Juízo Final, capazes de levar furtivamente grandes cargas nucleares, serão operados no Pacífico. O russo promete instalar mísseis nucleares táticos, que visam a atingir alvos militares de forma mais contida, na aliada Belarus, cuja TV estatal mostrou nesta semana imagens de pilotos sendo treinados para operar aviões de ataque Su-25 com bombas atômicas.
Como seria óbvio, o Comando de Ataque Global dos EUA disse que o teste foi rotineiro, sem citar Rússia, China ou Coreia do Norte, para ficar nos rivais nucleares.
Moscou reservou, nas cartas de alerta aeronáuticas internacionais, uma área no Ártico para um suposto lançamento de míssil balístico de submarino, que pode ocorrer até o dia 23. Há uma semana, havia feito um outro teste com arma em solo.
EUA e Rússia comandam quase 90% das armas nucleares do mundo, uma herança da Guerra Fria em sua primeira versão, encerrada com a dissolução soviética em 1991. Americanos e russos têm 11.133 ogivas, seguidos por China (410) e França (290).
IGOR GIELOW / Folhapress