Como a pintura do homem das cavernas inspira artistas nascidos na era da internet

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Numa galeria na região central de São Paulo, um círculo de terra coberto por esparsa vegetação rasteira é o centro gravitacional de uma exposição de pinturas também feitas com barro. A artista, Kelton Campos Fausto, construiu ainda pequenos totens de terra com cabeça de boneco para tratar em suas obras sobre o ensinamento dos orixás de que os seres humanos foram criados a partir da lama.

A alguns quilômetros de lá, num museu localizado no Jardim Europa, aquarelas em tons terrosos de Davi de Jesus do Nascimento que mostram figuras animais, feitas há menos de cinco anos, ao lado de lascas de pedra com desenhos da mesma estirpe -estas ilustrações, porém, descobertas em escavações no interior do Piauí, datam de milhares de anos e estão esmaecidas pela passagem do tempo.

As duas mostras, entre tantas outras no circuito de arte paulistano, trazem uma seleção de artistas jovens, nascidos já na era da internet, mas que desenvolvem trabalhos voltados para um passado quando nem escrita havia.

A produção desta turma reverencia, por um lado, a iconografia rupestre e, por outro, o esoterismo das religiões com matriz africana, expresso nas constantes referências a orixás nos trabalhos e ao uso incessante do termo ancestralidade nos textos das obras.

Distintos, ambos os temas devem aparecer bastante nos trabalhos expostos na próxima Bienal de São Paulo, que começa em setembro e tem na sua escalação nomes que lidam com a questão da magia, como Tadáskía, e do ritualístico religioso, como Castiel Vitorino Brasileiro.

Mas por que artistas nascidos nos anos 1990 estão produzindo arte como se fossem homens das cavernas ou, então, buscando os seus antepassados em tempos imemoriais?

Germano Dushá, organizador da mostra “Terra e Temperatura”, na galeria Almeida e Dale, em 2021, defende que os símbolos nas paredes das cavernas são uma iconografia universal. “Se é universal, também faz sentido hoje e vá fazer para sempre, porque tem a ver com a experiência humana”, afirma.

A exposição no MuBE, o Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, organiza em torno de documentos e lascas de rocha trazidas da Serra da Capivara o trabalho de alguns artistas jovens que voluntariamente fizeram expedições ao local ou que têm trabalhos com analogia temática com este importante sítio arqueológico brasileiro.

O visitante vê, por exemplo, impressões sobre pedra de Valentina Tong, uma obra de fortíssima influência rupestre, e vasos de cerâmica produzidos este ano por Raphael Oboé junto a urnas de 900 anos.

Já quem foi efetivamente criado perto da Serra da Capivara, como Higo José, de 24 anos, conta que a estética da pintura nas rochas está presente no imaginário dos locais de maneira muito forte, o que o levou a desenvolver bordados de lã representando cenas de caça e a vegetação da região.

“A gente discute a arte feita depois da colonização do Brasil, mas nunca olha para a arte que veio antes. Meu trabalho quer mostrar que já existia um lugar aqui ocupado por uma sociedade antes da colonização”, ele diz.

Mas o interesse de José pelo arcaico não o impede de criar imagens de elementos têxteis de aspecto fofo usando inteligência artificial, o que evidencia uma outra característica desta turma -o letramento na tecnologia, mesmo que ela não seja tema de seu trabalhos.

Não é anacrônico ser criado num mundo supertecnológico e optar por direcionar sua energia criativa para a idade da pedra.

Dushá lembra que Castiel Vitorino Brasileiro, Tadáskía e Davi de Jesus do Nascimento, todos da década de 1990, são artistas muito conscientes dos meios digitais, altamente conectados. “Essa geração nascida na internet tem mais facilidade para ir e voltar. Pode falar de uma coisa mais histórica sem perder de vista as questões atuais”, afirma.

Assim como Kelton Campos, a artista das pinturas de barro, Castiel Vitorino Brasileiro também se volta para cultos com matriz africana em seu trabalho. Ela agora chega ao fim de uma temporada no Marrocos, onde foi pesquisar “kalunga”, uma entidade da umbanda e do candomblé com diversos significados, segundo a artista. Pode ser uma força de transfiguração, um lugar onde estão as memórias, mas também o oceano ou um cemitério. “É tudo isso, né?”

Na foto de abertura do site onde documenta a pesquisa, a artista aparece seminua, ajoelhada, de braços esticados sobre a terra. Em outra imagem, Vitorino está só de saia, deitada numa esteira, no meio de um ritual que descreve em seu Instagram como “meditação, telepatia e psicografia”.

Um de seus objetivos com o projeto de “kalunga”, ela conta, é construir uma escola de medicina ou um templo de cura, como chama, em Fonte Grande, a comunidade de Vitória onde nasceu.

Para a Bienal de São Paulo, a artista desenvolve uma instalação na qual indaga por que a polícia apreende objetos de terreiros, como esculturas, roupas e instrumentos musicais, que ela diz considerar de valor artístico. “Minha questão é por que demonizaram essa experiência estética.”

A penetração do esoterismo religioso no circuito das artes se dá também por transformações macro pelas quais passam museus, galerias e bienais, que reveem seus curadores -adicionando nos quadros pessoas não-brancas- e o que expõem -pendurando nas paredes a arte de pessoas não-brancas.

“Estamos num momento de ruptura de paradigmas, com exposições que trazem à tona artistas negros e indígenas, e estas pessoas vêm de matrizes culturais que não são necessariamente as eurocentradas que serviram como referências principais até hoje nos museus. É de se esperar que essas outras matrizes tenham suas ligações religiosas”, afirma Guilherme Wisnik, o organizador da mostra no MubE.

Wisnik também sugere que talvez esteja em baixa o desencantamento do mundo, um conceito desenvolvido pelo sociologista alemão Max Weber. O desencantamento é o processo de racionalização que levou à desvalorização religiosa e ao desenvolvimento da ciência nas sociedades modernas ocidentais, colocando como crendice o que não pode ser comprovado.

O momento agora, ele diz, é outro, de entender ideias como a do líder indígena Ailton Krenak, para quem a Terra é um organismo vivo.

“Com a retomada das outras matrizes culturais e com a percepção de que o processo racionalista ocidental científico em grande medida está nos levando à deterioração e à destruição da natureza, há uma vontade de beber na fonte de novo dessas outras formas de pensar.”

Os desenhos rupestres, acrescenta Wisnik, são compreendidos nesta chave, pois eles tinham uma função mágica para sociedades paleolíticas, de acordo com alguns pesquisadores. Uma pintura de caça, diz, não era uma representação estetizada do ato. Era uma espécie de chamamento ritualístico para que a caça acontecesse, isto é, uma indutora de realidade.

KELTON CAMPOS FAUSTO – QUANDO TUDO TERRA ERA

Quando Até 8 de julho; de ter. a sáb., das 10h às 19h

Onde Galeria HOA – r. Brigadeiro Galvão, 480, São Paulo

Preço Grátis

PEDRA VIVA: SERRA DA CAPIVARA, O LEGADO DE NIÈDE GUIDON

Quando Até 6 de agosto; ter. a dom, das 11h às 17h

Onde MuBe – r. Alemanha, 221, São Paulo

Preço Grátis

DAVI DE JESUS DO NASCIMENTO – NA BOCA DA NOITE, OS MURUINS

Quando Até 24 de junho; de ter. a sáb., das 13h às 18h

Onde Instituto Çarê – r. dr. Avelino Chaves, 133, São Paulo

Preço Grátis

JOÃO PERASSOLO / Folhapress

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