SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando era criança e ainda não atendia pelo nome que tem hoje, Elliot Page sonhava em ser como o garoto que protagoniza “E.T. – O Extraterrestre”, o filme clássico de Steven Spielberg. Anos se passaram. Tendo mais controle sobre o próprio corpo, ele fez uma tatuagem com uma referência ao longa, se rebatizou com o nome do personagem e passou pelo processo de transição de gênero.
Aos 36 anos, o ator, que fez “A Origem” e “X-Men 3: O Confronto Final”, acaba de lançar “Pageboy”, livro publicado pela Intrínseca em que relata como foi se descobrir um homem em frente às câmeras. É um texto permeado pelos traumas e abusos que atravessam a vida do canadense, um dos artistas trans de maior destaque dos últimos anos.
Page ficou conhecido por viver a protagonista de “Juno”, filme de 15 anos atrás em que interpreta uma adolescente grávida, papel pelo qual ele foi indicado ao Oscar na categoria de melhor atuação.
Ser lembrado por interpretar uma garota não é um problema para Page, que diz ter carinho pela personagem. Mesmo assim, o canadense conta que pensar em “Juno” o faz se lembrar de uma época ruim, quando era forçado a esconder sua disforia de gênero.
“As gravações de ‘Juno’ foram maravilhosas, uma das minhas favoritas, mas foi péssimo ter que esconder quem eu realmente era durante a divulgação do filme. Não quero olhar para nada desse passado”, afirma o ator, por telefone.
Ainda que estivesse distante de se descobrir trans, Page já se identificava com roupas consideradas masculinas. Nos tapetes vermelhos de “Juno”, no entanto, era forçado a trocar os terninhos por vestidos. Tentavam ligar sua imagem a estereótipos de feminilidade, diz Page, porque revistas e jornais começaram a especular sobre sua sexualidade.
Foi só em 2014, sete anos depois do lançamento do filme, que ele falou publicamente sobre sua sexualidade. Na ocasião, afirmou ser uma mulher lésbica durante um evento sobre direitos humanos em Las Vegas, nos Estados Unidos. Ainda não era aquela, no entanto, a sua declaração final.
“Parte de mim sabe há muito tempo que sou transexual”, afirma o ator. “Houve momentos em que quis fazer a transição, mas eu afastava esses pensamentos. Afinal, como você pode fazer isso sendo uma pessoa pública e um ator? Eu me vi numa bifurcação e acabei escolhendo o caminho errado. Mas a vida é uma jornada, e aqui estamos.”
Page só revelou à imprensa que é um homem trans em 2020, depois de anos se afastando propositalmente de sua condição, afirma ele, para interpretar os papéis de mulheres que eram oferecidos. Já que trabalhava atuando em frente às câmeras, pensava ele, não podia sentir incômodo em vestir roupas femininas.
Até que chegou o momento em que Page não aguentou mais se esconder. “A fama foi desvantajosa, mas também me deu caminhos para conseguir o que precisava”, ele afirma. “Foi por causa do trabalho e dos recursos aos quais tive acesso que pude ter os cuidados de saúde e de afirmação de gênero que me deram este corpo e esta vida.”
Page frisa que se considera um homem com privilégios. Gastou US$ 12 mil, o equivalente a cerca de R$ 60 mil, para retirar os seios numa clínica particular, com uma certa facilidade que a maioria das pessoas trans não têm.
Parte dessa consciência surgiu quando ele filmava a série documental “Gaycation”, que o levou a vários países para conhecer diferentes realidades da população LGBTQIA+.
Page visitou o Brasil em 2016, episódio registrado no segundo capítulo do seriado. Passeou por bares lésbicos, conheceu uma travesti que se prostitui, topou com um ex-policial que matava gays por prazer, conversou com Jean Wyllys, o único parlamentar assumidamente gay àquela época, e entrevistou Jair Bolsonaro, que se elegeria presidente dois anos depois.
Page ouviu de Bolsonaro que homossexualidade é um comportamento plenamente evitável e que o número de homossexuais no país cresceu depois que as mulheres entraram no mercado de trabalho.
Ele diz se lembrar bem da conversa. “Foi desconfortável, mas não me surpreendeu. Soube que Bolsonaro teve uma política misógina e anti-LGBT e que as coisas só ficaram piores. Fico feliz que ele tenha perdido”, afirma o ator, acrescentando que prefere não comentar o atual mandato de Lula porque não conhece o presidente o suficiente.
O triunfo de políticos conservadores, ele afirma, vem na esteira de um aumento do número de projetos anti-LGBTQIA+ nos Estados Unidos. O governador da Flórida, Ron DeSantis, assinou no mês passado uma lei que proíbe tratamentos de transição de gênero para menores de idade.
“O discurso antitrans é parecido com o que era dito sobre gays, lésbicas e bissexuais nos anos 1980 e 1990. É uma repetição de conversa fiada, usada para dar lugar ao ódio, para ganhar votos, controle, e nos distrair dos verdadeiros problemas. Pessoas estão com fome, não têm água filtrada, mas estamos falando sobre demonizar pessoas trans. É um absurdo”, afirma o ator.
Há espaço para militância e pitacos políticos como este nas páginas de “Pageboy”, mas o canadense quer mesmo é contar a própria história.
Sem seguir uma ordem cronológica, o ator dedica capítulos inteiros à sua infância no Canadá, a relacionamentos com mulheres e às violências que enfrentou. Lembra, por exemplo, quando fez sexo oral num homem numa tentativa de mudar a própria sexualidade e da vez em que foi assediado pelo que chama no livro de “um dos atores mais famosos do mundo”.
“Hollywood é um lugar transfóbico. O mundo inteiro é”, afirma o ator. “Tenho minhas dúvidas de que as coisas estejam melhores. Há só um pouquinho a mais de representatividade e compreensão.”
A Netflix é uma das empresas que têm dado pequenos passos nessa direção. Dona do seriado “The Umbrella Academy”, que tem Page no elenco principal, a plataforma mudou o nome do ator em todas as fichas de produções das quais ele agora faz parte.
Na história da terceira temporada da série de ficção, lançada no ano passado, seu personagem passa por uma transição de gênero para acompanhar a mudança vivida pelo ator em sua vida real.
A mudança foi sugerida por Steve Blackman, o showrunner do seriado. Ele convidou o escritor Thomas Page McBee, que também é um homem transexual, para ajudar a construir aquela mudança do personagem no enredo.
“Para mim, é um divisor de águas sair para trabalhar com a sensação de estar no meu próprio corpo”, diz Page. Um dos seus próximos lançamentos é o filme “Close to You”, um drama dirigido pelo cineasta britânico Dominic Savage.
Numa das últimas vezes em que celebrou o Halloween, quando já se chamava Elliot Page, o ator realizou um sonho de infância e se fantasiou como o garoto do filme “E.T.”. É só um novo capítulo de sua vida, mas o primeiro que ele sente estar vivendo de verdade.
PAGEBOY
Preço R$ 49,90 (304 págs.); ebook (R$ 34,90)
Autoria Elliot Page
Editora Intrínseca
Tradução Arthur Ramos
GUILHERME LUIS / Folhapress