RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Jards Macalé arrasta seu par de sandálias azul-bebê até abrir a porta de seu apartamento no Leme, na zona sul carioca. Do mesmo modo, volta ao sofá da sala, onde se senta, com a camisa meio desabotoada, entrevendo seu cordão de ouro. Ali, ele saca do bolso o maço de Dunhill e acende um cigarro.
De repente, o telefone toca: é o diretor artístico Romulo Fróes, numa chamada de vídeo. “Ô Romulo, está sabendo que vão ‘subir’ a porra toda daqui a três dias, né? As pessoas que ouviram se deliciaram”, afirma Macalé. O violonista, cantor e compositor, que completou 80 anos em março, se referia a “Coração Bifurcado”, seu 13º disco de inéditas, que chega às plataformas digitais na sexta-feira, dia 28.
Há uma premissa temática em seu novo trabalho. As 12 canções tratam das diferentes formas do amor. “Diante do cenário de genocídio emocional, pai brigando com filho, marido brigando com a sogra, uma porradaria horrorosa, ninguém falava de amor”, ele conta. “Estava na hora de retomar o amor que eu tenho para dar e fazer um disco de amor como gesto político.”
Em “Besta Fera”, de 2019, Macalé retratou o governo Bolsonaro como um período de trevas. Agora, ele se engaja na tentativa de pacificar o país, ainda dividido pela ideologia política. O cantor se sente confiante, depois de ter feito um show na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. “Quando Lula subiu a rampa com a Janja e aquela vira-lata, eu me senti o próprio vira-lata. Depois, ainda ouvi Heitor Villa-Lobos, até agora estou emocionado.”
Para o novo álbum, Macalé inverteu seu processo criativo. Primeiro, compôs os temas, depois, os delegou aos poetas, entre velhos parceiros e a garotada da cena paulistana que o rodeia. Gal Costa, morta em novembro passado, cantaria “Simples Assim”, composição com Romulo Fróes.
“Estava tudo certo, me correspondia todo dia com ela, até havíamos ensaiado por WhatsApp e aí aconteceu aquela coisa horrível. Parte da beleza desse mundo se foi”, afirma. Durante a ditadura, Macalé foi um alicerce afetivo e musical para Gal, tendo composto “Vapor Barato” e “Mal Secreto”, com Waly Salomão, e produzido o disco “Legal”, em 1970. Ná Ozzetti interpretou a canção no lugar da baiana.
“Coração Bifurcado” abre com “Amor In Natura”, faixa-manifesto escrita por José Carlos Capinan, com quem Macalé compôs o clássico “Movimento dos Barcos”, em 1972.
Seguindo a linha do baixo de Pedro Dantas, todos os versos se iniciam com “o amor”, mostrando as possíveis manifestações do fenômeno. Nas antíteses de “o amor faz sol, o amor faz chuva/ o amor pode tudo, o amor não pode nada”, o sentimento se mostra soberano, capaz de se espalhar por todos os cantos.
O tema lírico-amoroso se faz místico na música de terreiro que dá nome ao disco. A parceria com Kiko Dinucci investiga o Rio de Janeiro das encruzilhadas, onde se dá um “gole de sorte/ no fio da navalha”. O atabaque de Thomas Harres e o coro feminino ao fundo reforçam a herança musical das religiões de matriz africana.
Em seguida, Capinan retorna em “A Arte de Não Morrer”, canção que ecoa o célebre poema “A Arte de Perder” escrito pela americana Elizabeth Bishop. É uma melodia misteriosa, em que o arranjo de Antônio Neves para os sopros se combina com as cores da guitarra de Held e o violão de Macalé. Ao fim de cada estrofe, os instrumentos se embaralham, desvelando o que a canção guardava dentro de si.
“Vivo dentro de um poema/ Preso na minha canção/ A arte de viver livre/ Nas grades do coração”, diz a letra. Aprisionado à melodia, o eu lírico reflete sobre a própria natureza da canção, arte híbrida que só existe no imbricamento de letra e música. Nesse sentido, o poema “Grãos de Açúcar”, escrito por Alice Coutinho, eleva a qualidade literária do disco.
É uma letra longa e lisérgica, que versa sobre o amor ao modo de Tom Jobim. “Olha, daqui os navios parecem formigas/ Seguindo faróis como grãos de açúcar, Dindi.” Na quinta estrofe, Dindi, a mesma da canção de Tom, sofre um processo de desrealização. “Barriga, canela, pescoço, vapor/ É a coisa mais linda, você não existe, Dindi.”
A mulher passa a ser musa, de modo que “as sombras se beijam nas águas do mar.” Já em “Mistérios do Nosso Amor”, parceria com Ronaldo Bastos, Maria Bethânia desce à mundanidade, entoando o ciúme num samba-canção, típico das antigas boates de Copacabana.
No disco, há duas criações concebidas só por Macalé: “Cante”, mantra de imediata apreciação, e “Amo Tanto”, interpretada por Nara Leão no disco “Nara Pede Passagem”, de 1966. “Achei que a música cabia, porque fiz quando tinha uns 15 anos. Depois, a Nara é a nossa ‘top of the pop’, e eu quis mostrar mesmo que a canção é do caralho”, afirma Macalé.
“Eu vim de longe”, diz um verso. Acontecimento desconcertante, a voz de Nara parece chegar mesmo de outro plano, soando com o violão de Dino 7 cordas, o cavaquinho de Canhoto e a flauta de Copinha.
Sobretudo, a inclusão de “Amo Tanto” reafirma o interesse de Macalé pela poética de Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo nos 1950. De Vinicius, musicaria o poema “O Mais que Perfeito”, de 1962, gravado por Clara Nunes e Bethânia. O regresso ao Leme, portanto, não é coincidência.
Nascido na Tijuca, Macalé passou a juventude entre Copacabana e Ipanema, nas mesas da Churrascaria Pirajá e do restaurante La Fiorentina. Com Nara, a afinidade foi instantânea. Ela havia rompido com o lirismo descompromissado da época, unindo a bossa nova à música dos morros. Na época, Macalé chegou a acompanhar a cantora ao violão em shows no clube Caiçaras, na Lagoa.
No ensaio biográfico “Eu só Faço O que Quero”, Fred Coelho assinala que, em diversos momentos da carreira, Macalé andou em grupos, mas nunca fez parte deles de fato. Ao contrário, estava preocupado em fundar sua própria linguagem artística.
Assim, na era dos festivais, ficou deslocado, porque ainda se detinha à poética viniciana. Nos anos 1970, foi um dos agentes do processo de eletrificação da música brasileira, adquirindo a face mórbida e romântica dos sucessos “Só Morto” e “Hotel das Estrelas”, de 1970 e 1972, respectivamente.
Mesmo tendo feito os arranjos do disco “Transa”, de Caetano Veloso, Macalé ainda precisa dizer que nunca foi tropicalista. Ele prefere ser reconhecido como um compositor carioca. A total independência do compositor está assentada no instrumento musical que escolheu, símbolo de sua singularidade estética.
O violão “sujo” de Macalé é um automóvel desembestado, uma geringonça que “geme & treme & chora & mata”. Oriundo da técnica erudita, seu violão se tornou a síntese do estilo de Nelson Cavaquinho e de Jimi Hendrix, alicerçado nas batidas de João Gilberto, seu amigo de toda a vida, de quem coleciona anedotas. “Não haveria música brasileira sem João Gilberto e a maconha”, afirma Macalé, que rememora um incidente durante uma visita a casa do amigo.
“Ele queria ver o quanto tinha absorvido da música dele. Então, a gente começou a tocar o mesmo acorde o tempo todo. De repente, ele ficou irritado e disse que eu só queria chupar os acordes dele. João se trancou no quarto, eu fiquei meia hora esperando, e ele não apareceu mais. Daí, fui embora. Um mês depois, como se nada tivesse acontecido, ele me ligou e só disse isso com aquela voz mansa: ‘Macalas, a bossa nova não existe, o que existe é o samba’. E desligou o telefone.”
O segundo entrevero aconteceu nos anos 1980 quando os dois estavam hospedados num hotel em Águas Claras, no interior paulista, na ocasião do Festival Iacanga. “Ele quis me bater com o cabide do quarto do hotel, porque eu estava fumando no quarto vizinho. Ele ligou para o meu quarto reclamando, eu bati o telefone na cara dele. Então, João saiu do quarto, eu, nu, saí do meu, e ele tentou me bater com o cabide. Ele estava com a razão.”
Na mesma década, Macalé pagaria o preço por não fazer concessões aos poderosos. Foi boicotado pelas gravadoras e pela mídia, caindo numa longa depressão. Numa das crises, João salvou sua vida cantando ao pé do ouvido “Rancho Fundo”, de Ary Barroso. Passado tanto tempo, Macalé continua subversivo.
Em shows recentes, a interpretação “suja” de clássicos da bossa nova ultrapassa a limpidez do violão joãogilbertiano. Sendo um gesto político, “Coração Bifurcado” redimensiona novamente as canções de amor, agora não mais descompromissadas com a vida pública brasileira.
Há, porém, uma diferença: o cantor não precisa mais discutir com as gravadoras. “No quesito rendimentos, está a mesma merda. Na realização dos discos, acho interessante, não preciso da gravadora para divulgar o meu trabalho.”
Como parte das celebrações de seus 80 anos, Macalé espera ainda o lançamento de um documentário realizado por sua mulher, a atriz e cineasta Rejane Zilles. “Macaleia”, nome de um penetrável de Hélio Oiticica, chega aos cinemas em julho, tratando da amizade entre o artista plástico e o músico.
Eu compunha músicas para as instalações dos artistas, isso influenciou as minhas composições. No caso do Oiticica, o que mais eu gostava nele era a liberdade criativa, é fundamental para um artista se arriscar”, afirma Macalé, que teve Lygia Clark como “segunda mãe”.
Em paz, Macalé ata as duas pontas da vida no centro da história da música popular brasileira. Pelas ruas do Leme, ele segue a mesma rotina todos os dias. “Aqui sou um homem comum, acordo às 6h30 da manhã, caminho cedinho até a Princesa Isabel, paro na padaria, onde bebo meu suco de laranja e como meu sanduichinho, de queijo minas, por favor. Na volta, ainda dou dois ‘tapinhas’ antes de começar o dia”, diz ele.
“Não tenho medo da morte. Só quero morrer rapidinho, sem sofrer. Tenho 80 anos, está tudo resolvido, nada aconteceu que me fizesse ter culpas ou saudades. Sofri para caralho, tive grandes amores, me diverti para caralho durante 80 anos. Olho para trás e digo ‘está tudo bem’. Entre mortos e feridos, eu sobrei, agora é me divertir da melhor forma. Enquanto eu estiver entrando e saindo do cemitério com as minhas próprias pernas, estou me sentindo ótimo. Viver é do caralho, quem quiser que conte outra.”
CORAÇÃO BIFURCADO
Quando sex. 28/4
Onde Nas plataformas digitais
Autoria Jards Macalé
Produção Guilherme Held, Pedro Dantas, Rodrigo Campos e Thomas Harres
Direção Romulo Fróes
Gravadora Biscoito Fino
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress