Na Feira do Livro, Txai Suruí alerta sobre o marco temporal, dança e recita versos

SÃO PAULO, SP 9FOLHAPRESS) – “Nós somos natureza”, discorria um dos versos entoados por Txai Suruí no começo da conversa que abriu o fim de semana na Feira do Livro. “Quem não é indígena talvez ouça isso e ache que é só um poema, mas não é.”

“Talvez os não indígenas só entendam quando beberem a água envenenada de mercúrio, sentir entrando no corpo. Talvez só ficando doente entenda que o envenenamento dos rios não é um problema distante deles.”

Embalada entre versos e danças, a conversa da jovem ativista e colunista da Folha com Jerá Guarani, mediada pelo jornalista Bernardo Esteves, foi acima de tudo uma aula para um público em sua maioria branco.

Um dos pontos repisados por Txai, que assina uma coluna na Folha, foi a presença de milhares de cabeças de gado ilegais, segundo ela, cultivadas nas terras indígenas de Rondônia.

“Depois essa carne é vendida para a França, e quem compra precisa saber que come carne amaldiçoada. Porque lá é um cemitério, é uma terra sagrada, então não é algo envenenado apenas pelos agrotóxicos, mas amaldiçoado.”

Sua companheira de mesa, que vem de uma aldeia na capital paulista, afirmou que seu povo não se considera melhor que outros, mas se orgulha de conseguir “viver com a natureza sem destruí-la”.

A discussão sobre o projeto do marco temporal, aprovado na Câmara e caminhando com pedido de urgência no Senado, não deixou de ser mencionada.

A proposta é criticada pelos povos originários por estabelecer o entendimento de que as terras indígenas eram aquelas demarcadas no momento em que a Constituição foi promulgada, em 1988.

Mas segundo Txai, há outros aspectos alarmantes no texto, por exemplo, o afrouxamento da possibilidade de contato com comunidades em isolamento voluntário, ou seja, que nunca tiveram contato com povos ocidentais por vontade própria.

“Hoje a política indígena não permite isso. Para vocês terem ideia, quando meu povo teve contato pela primeira vez, há 64 anos, éramos 5.000 pessoas. Hoje temos cerca de 250. É isso que pode acontecer com esses povos.”

O público acompanhou uma conversa que teve ares de lição, com muita gente tomando nota -inclusive, ao final, se criticou que as instituições escolares brasileiras ignorem saberes que os indígenas aprendem de berço, como o plantio e as fases lunares.

Um outro aprendizado, provocado por uma pergunta do mediador ao final, teve a ver com o que seria o feminismo indígena.

Jerá contou que mora em uma aldeia hoje comandada por mulheres e que tem lembranças de, quando pequena, situações de violência doméstica serem tratadas como coisas sem importância por líderes homens.

Hoje, ela pensa nas respostas à violência de gênero como algo a ser resolvido em coletivo. “A gente fortalece a ideia de que moramos juntos, não fazemos passeatas só de nós mulheres, porque estamos junto com os homens. Lembramos que antes de serem grandes e musculosos, eles já foram crianças e se sentiram impotentes, por isso que temos que lutar juntos pelo fim da violência.”

Jerá relatou conversas emocionadas, feitas em separado com homens e mulheres envolvidos em crises. Depois, quando os reuniam, os homens choravam muito, culpados.

Na mesa seguinte, Geni Guimarães chorou ao ler um poema dedicado a irmã. Ela contou sua trajetória literária em versos: declamou “Infância Acesa” para relembrar o “café morninho, cansado e minguado” das manhas de sua infância, antes de andar por uma hora e meia no caminho da fazenda até a escola.

A conversa com Eliane Marques foi um encontro geracional entre ficcionistas. O romance de estreia da autora, “Louças de Família”, publicado pela Autência Contemporânea, mistura memória e ancestralidade para narrar as heranças perversas da escravidão e suas repercussões nas novas gerações de mulheres negras.

O cotidiano familiar foi tema central da interação entre as escritoras, ambas crescidas fora dos grandes centros. Eliane falou como crescer na fronteira entre Brasil e Uruguai, onde se fala “portunhol ou pretoguês espanholado”, a influenciou a testar novas linguagens em seu texto -como a junção de palavras para representar uma só figura, a exemplo de “minhanalista”.

Já Geni recitou “Fim dos Meus Natais com Macarronada”, sobre as delicias e dificuldades da vida na fazenda pelo olhar de uma criança. Vivências compartilhadas de forma similar por Eliane, impactada desde cedo pelas palavras –sua mãe já era próxima da literatura, enquanto “tirava pó das estantes dos brancos ricos”.

A mesa foi encerrada por mais um poema de Geni Guimarães, dedicado especialmente à ocasião. “Reforma” instiga a busca por uma sociedade melhor ou, em suas palavras, a “tatuar na consciência o direito de ser vivo com dignidade”.

WALTER PORTO E ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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