FOLHAPRESS – Publicado originalmente em 1992, “Um Circo Passa” pode ser chamado de um Patrick Modiano clássico: possui todos os elementos constitutivos do universo estético, político e literário do Nobel de Literatura francês.
A história do livro é composta por elipses de memória e uma descrição minimalista. Sabemos mais sobre a topografia das ruas de Paris do que as características físicas e psicológicas dos personagens.
Argumentar que na obra de Modiano a cidade de Paris é o personagem principal talvez seja um clichê da crítica, mas nem por isso é menos verdadeiro. É preciso qualificar o argumento, contudo.
Sua Paris é inventada. Tem menos a ver com a história, a política e a arquitetura da cidade e mais com os caminhos e descaminhos de sua memória e de como sua imaginação literária filtra, lê e decodifica todas essas coisas.
“Um Circo Passa” conta a história de Jean, protagonista e narrador do romance, que tem apenas 18 anos na Paris da década de 1960, quando conhece Gisèle, uma jovem um pouco mais velha, mas muito mais experiente do que ele, em uma circunstância pouco usual: um depoimento a alguma autoridade do governo cuja identidade não está clara.
Jean não consegue entender quem exatamente é Gisèle e quais acusações pairam sobre ambos. Aquilo, no entanto, que é motivo de inquietação também é de encantamento.
Como leitores, enxergamos os eventos que se sucedem a partir dos olhos e da percepção de Jean -como protagonista, ainda jovem, mas também como narrador, já mais velho, mas ainda confuso diante de situações e de pessoas cujas intenções e propósitos jamais consegue compreender com clareza, mas apenas navegar de maneira imperfeita e improvisada.
A escrita de Modiano é atmosférica e, de um jeito particular, cinematográfica. Jean tem algo da paixão e da urgência juvenil do Antoine Doinel de François Truffaut. Por outro lado, a descrição minimalista, os diálogos lacônicos e a ambientação onírica que permeia “Um Circo Passa” é puro noir francês.
Se o noir americano foi um desdobramento estético e cultural do cinismo geracional e do pessimismo existencial trazido pela Segunda Guerra, sua contraparte na França era tudo isso, mas pintada com cores filosóficas de uma tradição intelectual tipicamente francesa.
É difícil ler Modiano e não lembrar também do cineasta Jean-Pierre Melville -sobretudo de filmes como “O Exército das Sombras”, “O Silêncio do Mar” e “O Samurai”. Melville era gaullista (conservador e nacionalista, mas antifascista) e combateu na Resistência Francesa.
“O Silêncio do Mar”, a exemplo da literatura de Modiano, também aborda o principal evento formativo daquela geração: a ocupação alemã na França e a política de memória e de esquecimento decorrente disso. Como alguém disse uma vez, uma nação não é apenas um conjunto de memórias coletivas e compartilhadas, mas também aquilo que ela decide esquecer coletivamente.
A literatura de Modiano é um impulso especulativo de memória, que é, ao mesmo tempo, uma ética coletiva de ação política. Qual é a história que a França decidiu contar a si mesma sobre a ocupação alemã? Mas, e ainda mais relevante, quais são as consequências dessa história?
Seu projeto literário é corajoso, sofisticado e às vezes intencionalmente abstrato. É quase como se um esteta proustiano resolvesse investigar não apenas questões individuais e existenciais de memória, mas também aquelas de implicações políticas e coletivas, a partir da escrita de uma literatura de gênero.
“Um Circo Passa” é coisa de quem leu Baudelaire, mas também Chester Himes -que, aliás, dá o ar da graça no livro, sentado em um café parisiense, rodeado, é claro, de mulheres bonitas e misteriosas. Modiano é literatura noir, mas com sabor existencialista francês. Coisa fina e, cá pra nós, não dá em qualquer esquina não.
UM CIRCO PASSA
Avaliação Muito bom
Preço R$ 87,90 (256 págs.); R$ 61,90 (ebook)
Autoria Patrick Modiano
Editora Carambaia
Tradução Bernardo Ajzenberg
GABRIEL TRIGUEIRO / Folhapress