SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Nenhum escritor africano confessaria isso em público. Todos vão negar e ainda posar de rebeldes. Mas, no fundo, faz parte dos sonhos de muitos de nós (para alguns, propriamente O sonho): a condecoração no meio literário francês (cuja postura não falham em ridicularizar e desprezar). É nossa vergonha, mas também nossa glória fantasmagórica.”
Este é um trecho de “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, livro do senegalês Mohamed Mbougar Sarr que, veja só, alcançou a mais alta distinção da literatura francesa.
Sarr se tornou, há dois anos, o primeiro escritor da África subsaariana a vencer o prêmio Goncourt, ambicionado por dez entre dez autores francófonos –ainda que não confessem isso em público.
“Mas vocês, escritores e intelectuais africanos, bem que poderiam desconfiar de certos reconhecimentos”, diz um amigo ao protagonista depois. “Mais dia, menos dia, a fim de apaziguar sua consciência, a França burguesa vai consagrar um de vocês, e às vezes vemos um africano que é bem-sucedido ou tomado como modelo. Mas no fundo, acredite em mim, vocês são e continuarão a ser estrangeiros.”
Parece que o romance, que chega ao Brasil com estrondo após vender mais de 500 mil exemplares na França, estava prevendo seu próprio destino.
“A ficção continuou se escrevendo na realidade, de certa forma”, diz o escritor, um jovem de 32 anos de camiseta colorida com estampas senegalesas na entrevista por Zoom. “Se você zomba de alguma coisa, ela pode zombar de você de volta. É o jogo.”
“Escritores africanos querem ser reconhecidos não só com premiações, mas com leitores, que normalmente não têm muito na França. Não é porque recebi o Goncourt que esqueci que ao meu lado, e antes de mim, há muitos autores que não são lidos nem conhecidos.”
O mais notável de toda essa situação é que “A Mais Recôndita Memória dos Homens” é um comentário afrontoso sobre as engrenagens do sistema literário –e da literatura, mas cuidado para não confundir os dois, porque são conceitos que podem se distanciar.
No romance, o protagonista Diégane Faye roda o mundo em busca de um autor negro misterioso que escreveu uma obra-prima, “O Labirinto do Inumano”, e então sumiu da face da Terra.
A narrativa se desdobra como um suspense dos mais arrepiantes, apresentando personagens inesquecíveis vindos dos quatro cantos do planeta, mas com a ausência gritante daquele escritor, T.C. Elimane, pulsando em todas as páginas.
É um livro sofisticado, cuja reflexão sobre conceitos de obra e autoria bebe aos borbotões do chileno Roberto Bolaño e seus “Detetives Selvagens”, que fornecem um mapa preciso de leitura já na epígrafe e emprestam inspiração para o próprio título do romance.
Elimane, o vácuo central do romance, é um personagem ficcional –e não serão poucos os leitores que pesquisarão seu nome no Google, tão convincente é o mito criado em seu entorno–, mas se baseia numa história que realmente aconteceu.
Em 1968, Yambo Ouologuem se tornou o primeiro africano a vencer o prêmio Renaudot com o romance “O Dever da Violência”. Sua projeção meteórica durou até ser acusado de plágio de autores como, por exemplo, Graham Greene, –acossado pela patota literária francesa, ele se recolheu a sua terra natal, no Mali, e morreu esquecido em 2017.
“A Mais Recôndita Memória dos Homens” é dedicado a Ouologuem. Sarr afirma não ver uma postura de “mea culpa” do Goncourt ao premiar uma obra que fala tão abertamente de um escritor vilipendiado naquele mesmo ambiente literário. Enxerga apenas a evolução dos tempos.
“Não sei se foi a dimensão política do meu livro que predominou no seu reconhecimento”, pondera ele. “Talvez o prêmio tenha sido fruto de um engano –mas, se for pensar, todos os livros são lidos com algum mal entendido.”
Uma das principais questões do romance, aliás, é onde está a linha que demarca o que é plágio e o que é influência, colagem ou o que os acadêmicos chamam de intertextualidade. Sarr afirma que um dos critérios para definir isso é a cor da pele.
“Quando você escreve, diante de toda a biblioteca escrita antes de você pelos grandes autores, você se pergunta, o que eu posso trazer de novo? A resposta é simples. Nada.”
Segundo ele, é possível reinventar narrativas por meio de seu estilo pessoal, e daí podem frutificar bons livros, mas dificilmente se escapará de tudo o que o cânone já produziu. “E o ponto é, quando você pertence a essa tradição literária, pode brincar com ela, mas quando você é de outro lugar, será que pode fazer isso sem ser acusado de plágio?”
Se os franceses foram implacáveis com o malinês, Sarr devolve o troco contra todos os que chama de cúmplices, num raio-x devastador do mundo dos livros –os leitores brancos que leem os africanos “como quem faz caridade”; a crítica “mais tediosa da terra, agarrada a suas problemáticas ou a suas temáticas”; o leitorado de raiz africana, “intransigente como só uma minoria poderia ser, sempre ávida por ser representada embora seja irrepresentável”.
Há ainda no rol de personagens uma jovem carismática que alcançou seus 200 mil seguidores no Instagram com um romance “hipnótico e medíocre”; e uma turba de aspirantes a escritores que buscam seu lugar ao sol publicando os “livrinhos corretos que esperavam deles”.
“Não dá para justificar sua paixão por um livro por nenhuma razão externa”, discorre o senegalês, que já publicou no Brasil também o elogiado “Homens de Verdade” pela editora independente Malê. “O problema é que estamos num mundo em que a literatura não é só questão de arte, mas de indústria, e ela tem regras e formatos específicos para embalar os livros para seus leitores.”
Ele lembra que, na história da literatura feita na África, não faltam exemplos de obras que foram reescritas por seus editores ocidentais para se enquadrar a uma certa expectativa, a uma “sede de exotismo”, nas palavras de Sarr, que cria “livros artificiais”.
Todos os escritores querem ser lidos, reconhece o vencedor do Goncourt, mas precisam manter em mente que é impossível agradar a todos. “O que tem que se perguntar é: o que eu estou pronto para sacrificar? Qual o limite do preço que estou disposto a pagar?”
E este não é seu último conselho. “Quando estiver tentado a escrever frases fáceis, você deve sempre lembrar que todos os grandes escritores estão bem atrás de você, julgando. E eles são bem cruéis.”
A MAIS RECÔNDITA MEMÓRIA DOS HOMENS
Preço: R$ 104,90 (400 págs.); R$ 64,90 (ebook)
Autoria: Mohamed Mbougar Sarr
Editora: Fósforo
Tradução: Diogo Cardoso
WALTER PORTO / Folhapress