Lacunas e cassação de Deltan põem Ficha Limpa no divã após 13 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao mesmo tempo em que a argumentação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para cassar o deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) dividiu opiniões no mundo jurídico, o episódio deu novo fôlego àqueles que são críticos à Lei da Ficha Limpa, por considerar que ela seria excessivamente abrangente.

Por outro lado, a lei, aprovada em 2010, segue com lacunas para sua melhor efetivação.

A Folha de S.Paulo ouviu advogados e membros do Ministério Público sobre a legislação, seus pontos controvertidos ou desafios para aplicação.

O advogado e ex-juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da Ficha Limpa, considera que a lei ainda está em fase de consolidação, e não defende que seja aberto qualquer processo de discussão para alterá-la.

“Ela [Ficha Limpa] ainda tem muitos adversários poderosos que gostariam de se aproveitar da primeira oportunidade para fazer alterações, não para melhorá-la, mas para piorá-la”, diz.

Ele vê o texto como a primeira legislação de inelegibilidade com alguma eficácia, afirmando que as regras anteriores, na prática, não tornavam ninguém inelegível. “Qualquer que seja a crítica que receba, ela tem o grande mérito de ser a primeira vez que nós tivemos uma lei de inelegibilidade que de fato influenciasse o cenário político eleitoral.”

Segundo o portal de dados abertos do TSE, em 2022, das mais de 29 mil candidaturas, 198 tiveram a lei como motivo para indeferimento. Já em 2020, foram 2.380 candidaturas barradas como ficha suja em um universo de mais de 557 mil candidatos.

A única alteração defendida por Reis que impactaria a aplicação da Ficha Limpa, mas não a mudaria diretamente, seria prever na Lei das Eleições algum procedimento anterior ao registro de candidatura para verificação de quem é ou não elegível.

“Isso faria com que nós tivéssemos, entre os candidatos, apenas pessoas que de fato a Justiça Eleitoral considera que podem se candidatar”, diz Reis. “Evitaria esse problema de mandatos serem discutidos por anos a fio”, diz.

Ricardo Vita Porto, advogado eleitoral e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP, aponta também a demora para conclusão de processos como uma questão importante.

Ele considera que a diminuição do tempo de campanha para um mês e meio é um fator relevante, pois com ela também foi estendido o limite para registro da candidatura –e assim o tempo que a Justiça Eleitoral tem para julgar quais candidatos são elegíveis, antes da eleição, ficou menor.

“O que a gente tem visto é que, por conta dessa redução drástica nos prazos, a Justiça Eleitoral não tem conseguido dar uma resposta para o eleitor antes da data do pleito”, diz ele, ressaltando o impacto desse tipo de ocorrência em disputas de prefeitos que por vezes levam à realização de novas eleições.

A cada pleito, depois de encerrado o limite para registros de candidaturas, abre-se um prazo de cinco dias durante o qual eles podem ser questionados. Em 2022, o limite para registro foi em 15 de agosto; já o primeiro turno aconteceu um mês e meio mais tarde, em 2 de outubro.

Por outro lado, Vita Porto faz críticas às regras da Lei da Ficha Limpa. Ele avalia como negativo, por exemplo, que não haja uma modulação no período de inelegibilidade, com prazos de oito anos apenas para os casos mais graves, por exemplo.

Ele também critica a própria regra por meio da qual Deltan foi cassado.

“Vamos imaginar que um promotor tem um processo administrativo e ele vai ser absolvido, não tem nenhum fundamento, mas se ele decide se exonerar, ele vai ficar oito anos inelegível, sem que ele tenha nenhuma condenação”, explica.

Vitor Rhein Schirato, que atua como advogado e é professor de direito administrativo na Faculdade de Direito da USP, tem críticas à lei, por considerar que algumas das hipóteses são abertas demais.

Schirato considera razoável, por exemplo, que por precaução se impeça a candidatura de pessoas condenadas em segunda instância por improbidade administrativa. Por outro lado, tem críticas às hipóteses de inelegibilidade por renúncia ao cargo ou pedido de exoneração frente a algum tipo de processo.

“Às vezes a pessoa de fato vai renunciar para evitar ser cassada e perder os direitos políticos”, diz. “Agora, às vezes eu posso ter uma situação de instauração de um processo de cassação muito mais por caça às bruxas ou por questões políticas.”

Apesar da crítica à regra, Schirato considera que a leitura feita pelo TSE ao cassar o registro de Deltan era possível dentro do que diz a lei, a seu ver imprecisa.

A legislação determina que integrantes do Ministério Público que pedem exoneração com PAD (processo administrativo disciplinar) pendente devem ser declarados inelegíveis.

Os ministros da corte eleitoral entenderam que Deltan tentou fraudar a lei pelo fato de ter deixado o Ministério Público Federal quando respondia a procedimentos que, mais tarde, poderiam se transformar em PAD.

Para além do debate sobre o teor da lei em si, há ainda desafios para sua aplicação.

Paula Bajer, procuradora regional eleitoral no estado de São Paulo, considera que seria importante ter um sistema geral, com informações consolidadas, para otimizar o trabalho do Ministério Público.

“Muito precisa ser aperfeiçoado para que os sistemas se comuniquem mais ainda, para que a gente saiba com cada vez mais exatidão o que aconteceu com cada pessoa. Tenha um histórico mais exato possível de todas as combinações, de todos os procedimentos disciplinares instaurados em relação a cada candidato”, avalia.

“São várias alíneas [hipóteses] de impugnação e é tudo muito complexo para ser analisado em um curto espaço de tempo”, diz ela.

O chamado SisConta, sistema do Ministério Público, permite que órgãos enviem informações relacionadas à Ficha Limpa. Apesar disso, ainda há limitações práticas para pesquisa e identificação precisa de todos os casos de inelegibilidade.

Para o promotor de Justiça Rodrigo Zilio, membro auxiliar da Procuradoria-Geral Eleitoral, uma das grandes dificuldades para esse trabalho se refere especialmente à falta de uma base de dados consolidada no que se refere a decisões de fora do Judiciário.

“O grande problema é quando as decisões que levam à inelegibilidade vêm desses órgãos administrativos ou políticos, que a gente não tem certidão, a gente tem que ir atrás para buscar”, explica Zilio, que atuou como um dos capacitadores de curso para procuradores regionais eleitorais nas eleições do ano passado.

Ao todo são 5.570 municípios no país, o que dificulta o trabalho de oficiar todos os órgãos para obter as informações.

“Há uma lacuna nisso e é um trabalho bem difícil para o Ministério Público. Eu diria que [a falta de base consolidada] é um grande calcanhar de Aquiles para a gente poder trazer as causas de inelegibilidade.”

Schirato, por outro lado, avalia que não seria preciso avançar além do que já existe hoje. “É exatamente por isso que a lei dá legitimidade para um monte de gente, porque o outro candidato é o mais interessado em pesquisar a vida [do adversário].”

**LEI DA FICHA LIMPA**

Aprovada em 2010, ela alterou a Lei de Inelegibilidades, ampliando as hipóteses em que uma pessoa não poderia concorrer a cargos eletivos, estabelecendo como prazo o período de oito anos.

**PRINCIPAIS CRÍTICAS**

– Há quem considere muito amplas as hipóteses de inelegibilidade, indo contra o princípio de presunção da inocência, já que a pessoa pode ser tornar inelegível por uma decisão da qual ainda pode recorrer

– Também há críticas ao fato de que não há prazos intermediários de inelegibilidade além dos oito anos Em 2012 o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou a lei constitucional

Quem pode impugnar uma candidatura

– Candidatos; partidos; coligações; federações e o Ministério Público Eleitoral podem questionar os registros de candidatura. Eles podem alegar, por exemplo, que determinado candidato não atende aos critérios de elegibilidade.

– O prazo para apresentar esse tipo de ação é de cinco dias após a divulgação das listas dos registros

Algumas das hipóteses em que uma pessoa fica inelegível

– pessoas condenadas em decisão transitada em julgado ou em decisão proferida por órgão colegiado (mais de um juiz)

– políticos que renunciarem a seus mandatos após oferecimento de representação ou petição que possa resultar em cassação de mandato gestores públicos que tenham tido contas do exercício do cargo rejeitadas por ato doloso de improbidade administrativa

– pessoas excluídas do exercício da profissão por decisão de conselho profissional devido a infração ética

– servidores demitidos do serviço público devido a processo administrativo ou judicial membros do Ministério Público – aposentados compulsoriamente; que tenham perdido o cargo por sentença; ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária “na pendência de processo administrativo disciplinar”

RENATA GALF / Folhapress

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