Dia desses, numa animada roda de conversa com uma turma de posições heterogêneas ouvi uma frase que me chamou a atenção: “a imprensa está em crise”. Fiquei atento às interlocuções. Um colega com discurso bastante coerente, com o qual comungo, ponderou que a imprensa passa por transformações no avançado mundo da tecnologia, mas há uma longa trilha de oportunidades a serem exploradas.
Outro participante da roda, com muita simplicidade, falou: “imprensa em crise é falta de dinheiro ou falta de notícia”. Aí, não pude resistir. Desconheço a situação financeira dos veículos de comunicação, mas me pus a combater a tese da possível falta de notícia. Nunca, nem mesmo nos casos de impeachment pós Constituição de 1988, e nos cruciais momentos da “lava jato”, houve tamanha abundância de notícias, polêmicas e baixarias à disposição para pautar matérias jornalísticas. Todo esse arsenal emana do clã Bolsonaro. É só monitorar as redes sociais do Bolsonaro pai e dos Bolsonaros filhos para se extrair matérias diárias, capazes de preencher caderno de um jornal ou pautar todo um noticiário de TV.
Toda a farta verborragia do clã tem como pano de fundo a vocação ditatorial da família governante. Vocação de fazer inveja aos ditadores de direita ou de esquerda que ainda ocupam algum espaço no planeta. O falatório é sempre permeado pela falta de decoro. O tom do discurso foge, por completo, à boa postura que se espera de um chefe de governo e de representantes do povo no Legislativo. Mais se assemelha ao comportamento de um torcedor fanático, irado com o fracasso de seu time, junto ao alambrado do campo.
Na semana que se encerra, a liturgia do absurdo foi seguida à risca. O show foi inaugurado com o vídeo das “hienas e o rei leão”. Desnecessário registrar quem era o poderoso rei. As hienas eram representadas pela mais alta corte de justiça do País (que vem dando motivos a críticas por parte de quem quer viver numa sociedade segura e livre de corrupção), por desafetos do Presidente e por veículos de imprensa, dentre outros. A lastimável paródia rendeu pronunciamentos de Ministro do STF, da classe política e, por incrível que pareça, arrancou um pedido de desculpas do Presidente.
Aí, vem a divulgação, pela Globo, das declarações do porteiro do condomínio onde mora Bolsonaro, relacionadas ao caso “Marielle”. A matéria, que a meu ver, poderia ter sido melhor elaborada, com a colheita de depoimentos dos envolvidos, por exemplo, fez eclodir a fúria presidencial. Em uma manifestação madrugadora nas redes sociais, dos Emirados Árabes para o mundo, Bolsonaro lançou toda a sorte de impropérios contra a Rede Globo e Witzel, Governador do Rio de Janeiro, seu neodesafeto, dentre outros. Até ameaça velada de não renovação da concessão do dito canal de TV foi objeto do raivoso discurso.
Ainda era pouco para fechar a semana. O filho Eduardo, deputado federal, líder do governo paterno no Congresso e ex-futuro embaixador do Brasil nos EUA, deixou sua preciosa marca. Atento e preocupado com as conspirações da esquerda, e talvez fazendo a premonição de manifestações de protesto contra o governo, como as que vêm acontecendo no Chile, sentenciou: “O AI-5 pode voltar”. As manifestações de repúdio à fala absolutista pipocaram por todos os lados, do Congresso Nacional ao STF, passando por outras instituições fundamentais para a preservação do Estado de Direito. Feito o estrago, o culto discípulo de Olavo de Carvalho correu para dizer que “foi mal interpretado”.
Na finalização deste artigo recebi, ainda, a notícia de que uma célula da imprensa foi penalizada por divulgar matérias e opiniões contrárias a Bolsonaro. Saiu ordem do chefe para o cancelamento de todas as assinaturas da administração direta e indireta, mantidas com a Folha de São Paulo. Junto com a ordem, mandou um enigmático ”psiu” aos anunciantes.
Ainda que se reconheça que o ambiente democrático do Brasil, pós Constituição Federal de 1988, não renda espaço para a volta de uma ditadura, não é desarrazoado prestar a atenção. No cenário internacional a postura do governo brasileiro vem gerando indignação e causando preocupações, e no ambiente interno a forma como vem sendo conduzida a educação, a cultura, os direitos humanos e o relacionamento com as instituições já denota um retrocesso em termos de valores indissociáveis de uma democracia saudável.