SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando era boêmio, o alfaiate Neldício Sacramento, 83, costumava passar à noite no La Farina para tomar um caldo de galinha. Especializado em comida italiana, o restaurante funcionava desde 1971 no centro de São Paulo, mas não sobreviveu à fuga dos clientes provocada pela aproximação da cracolândia.
Sacramento resiste. Sempre de terno e gravata, um dos últimos alfaiates da região central lida diariamente com os perigos da rua Aurora, onde fica sua loja, instalada em um espaço apertado e ocupado por máquinas de costura, provas de roupas e um rádio onde ouve óperas.
Mineiro de Pedra Azul, ele chegou ao centro histórico há mais de 60 anos, quando o cenário era outro. Trabalhou na então sofisticada rua Barão de Itapetininga, onde ficavam elegantes casas de moda. Também foi funcionário de alfaiatarias localizadas na Galeria do Rock e no Largo do Arouche. Atendia artistas, empresários e gerentes de bancos.
A Aurora, onde está há três décadas, era rua de passagem no caminho de casa para o trabalho e, à noite, lugar de diversão. “Eu gostava de rodar o salão”, conta. “Dançava boleros, sambas-canção e jazz”. Quando entrava nas casas noturnas, era chamado de “New York”, por causa da música consagrada nas vozes de Liza Minnelli e Frank Sinatra.
Foi assim, indo e vindo, que descobriu o pequeno ponto onde hoje atende os clientes: funcionários de lojas da região, artistas de teatro, taxistas, moradores do centro e velhos conhecidos.
“Já tinha gente na rua, prostituição, mas não havia a cracolândia”, descreve sobre o centro de anos atrás. Ele diz não ter medo, mas mudou a rotina há seis anos, quando foi assaltado nos Campos Elíseos, indo para casa a pé. Desde então, só circula de táxi. “Me derrubaram no chão, rasgaram meus bolsos, pegaram meu celular, a carteira e o relógio”.
Da alfaiataria levaram recentemente o ferro usado para fechar a porta e é comum pessoas entrarem para pedir dinheiro ou um prato de comida, cena cotidiana na região central.
Nos últimos dias, o alfaiate é procurado também para selfies, o que nem sempre o agrada. Ele é um dos entrevistados do documentário “Rua Aurora – refúgio de todos os mundos”, produzido e dirigido por Camilo Cavalcante, que estreou no festival É Tudo Verdade, com a presença de Sacramento em sessão no Sesc 24 de Maio.
“Eu gosto do que faço”, disse para o público em bate-papo após a exibição do filme. “Além disso, vou fazer o quê? Meu negócio é ser alfaiate”, completou em entrevista à Folha. Um dos orgulhos dele é receber nos aniversários o telefonema de um antigo cliente. “Ele conta que usa uma roupa bonita para me dar os parabéns”.
CRISE DE SEGURANÇA
Ao menos 23 comerciantes fecharam as portas nos últimos meses na região da rua Santa Ifigênia e no bairro de Campos Elíseos, após a chegada de usuários de drogas da cracolândia que antes ocupavam o entorno da praça Júlio Prestes, a poucos quilômetros de distância.
Na rua Guainases, entre as ruas Vitória e Aurora, metade de um quarteirão tem lojas desocupadas. À noite, a rua fica intransitável devido à aglomeração de usuários de drogas.
Na manhã do dia 7, usuários de drogas invadiram e saquearam uma drogaria e um minimercado na avenida São João, após os dependentes químicos terem sido dispersados por uma ação conjunta de GCM (Guarda Civil Metropolitana), Polícia Militar e Polícia Civil.
No domingo de Páscoa (9), um restaurante de culinária árabe na avenida Rio Branco foi atacado por usuários de drogas. A porta de ferro foi quebrada ao meio e o bando roubou quase todos os eletrodomésticos da cozinha, comida e bebida estocadas.
Outras tentativas de invasões e saques aconteceram nos dias seguintes em supermercados e em ao menos outro restaurante. Grades de segurança foram instaladas em estabelecimentos e o clima é de tensão.
Na semana entre os dias 10 a 16 de abril, nas ruas e avenidas do entorno da cracolândia, a Polícia Militar atendeu 181 chamados de atitude suspeita, 162 ocorrências de perturbação do sossego, 84 de brigas, 46 de furto e 48 de roubo, de acordo com plataforma lançada pelo governo estadual.
Os crimes são concentrados no entorno da praça da República e nas ruas próximas, entre elas a Aurora onde fica a alfaiataria de Sacramento e que já foi famosa por ser o endereço de Adoniran Barbosa e de Mário de Andrade.
No edifício Santa Ignez, perto da alfaiataria, uma placa informa que Adoniran morou no prédio entre 1949 e 1962. Ali observava o cortiço que inspirou “Saudosa Maloca”, a música que retrata a verticalização da capital e parte da saga de três homens sem-teto.
CRISTINA CAMARGO / Folhapress