BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a Guerra da Ucrânia e a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, a Brasília encerraram a fase inicial de boa vontade do Ocidente com o governo do petista e devem colocar as relações do Brasil com EUA e União Europeia sob nova dinâmica.
Desde segunda-feira (17), a reportagem ouviu de interlocutores que mantiveram contato com governos estrangeiros expressões como “algumas linhas foram cruzadas” e “a lua de mel acabou”.
A eleição de Lula em 2022 foi recebida em Washington, Bruxelas e nas principais capitais europeias com entusiasmo e principalmente alívio depois de quatro anos de governo Jair Bolsonaro (PL).
O ex-presidente era considerado tóxico para a base política de Joe Biden nos EUA e boa parte dos líderes da Europa Ocidental. Representantes desses países já esperavam que Lula não fosse se alinhar a eles na condenação à Rússia, mas havia a expectativa de que a retomada em outros aspectos das relações –principalmente a liderança do petista no campo ambiental– compensaria eventuais atritos.
Mas, ainda segundo esses interlocutores, que aceitaram falar em condição de anonimato, um Lula com esse nível de antagonismo em relação a Washington e Europa no tema da guerra não estava na equação.
O fim da tal lua de mel, no entanto, não quer dizer que atores como EUA, União Europeia e Japão abandonarão a cooperação com o governo do petista ou atuarão para isolá-lo no cenário internacional.
O que há é a preocupação de que os atritos no campo político não contaminem dinâmicas em outras áreas. Nesta quinta (20), por exemplo, os EUA devem anunciar a intenção de injetar US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) no Fundo Amazônia, sinal de que querem prosseguir no engajamento na parte climática.
A avaliação, porém, é que tanto Washington como Bruxelas devem responder em termos mais duros eventuais novas falas de Lula culpando o Ocidente pelo conflito ou equiparando as responsabilidades de Volodimir Zelenski (Ucrânia) e Vladimir Putin (Rússia) pelas hostilidades. Além do mais, visitas de alto nível que estão sendo preparadas podem ser afetadas a depender de futuras manifestações.
Um exemplo do tipo de retórica que tende a vir desses países ocorreu no início desta semana. Na segunda-feira, dia em que Lavrov cumpria agenda no Itamaraty e no Palácio da Alvorada, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, classificou a postura de Lula sobre o tema como “repetição automática da propaganda russa e chinesa” e “profundamente problemática”.
Mesmo com a resposta do chanceler Mauro Vieira, que tentou baixar a temperatura, outros altos funcionários da Casa Branca mantiveram o tom, e um porta-voz da União Europeia também rebateu os argumentos de Lula e disse que a Rússia era a única responsável pela “agressão ilegítima à Ucrânia”.
Os diálogos sobre o tema também tendem a ficar mais duros em contatos privados. Na noite de terça (18), houve um telefonema entre o assessor especial de Lula, Celso Amorim, e o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan. Segundo um interlocutor dos americanos, o assessor de Biden foi “bastante duro e claro” ao apontar as preocupações de seu país com os acontecimentos recentes.
A fala de Lula que gerou mais reações ocorreu em Pequim, durante sua visita à China. Na ocasião, cobrou que os EUA “parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz” para encaminhar um acordo no Leste Europeu, uma referência ao envio de armas para que Kiev se defenda das ofensivas russas.
A queixa de representantes dos EUA e da Europa é a de que Lula teria enviado em poucos dias uma sequência de acenos à Rússia e à China em meio à guerra e, de forma mais ampla, ao quadro mais amplo que antagoniza Washington e Pequim. Eles citam a ida de Amorim a Moscou, onde chegou a se encontrar com Putin; a já citada viagem de Lula à China e as declarações do petista apontando o dedo para os EUA, além do argumento de que a “decisão pelo conflito foi tomada por dois países”.
Dentro dessa visão, a passagem de Lavrov por Brasília fechou o pacote de provocações a importantes sócios do Brasil, que encaram a guerra como a principal crise de segurança internacional em curso hoje.
Membros do governo ouvidos pela reportagem rebatem a avaliação e afirmam que as críticas ignoram gestos feitos ao bloco ocidental. Dizem que o Brasil adota postura de equilíbrio e citam a viagem de Lula aos EUA, em fevereiro, quando se encontrou com Biden, e a videoconferência com Zelenski no início de março.
Também argumentam que, no dia seguinte à visita de Lavrov, Lula recebeu em Brasília o presidente da Romênia, Klaus Iohannis, que apresentou a visão da União Europeia e da Otan sobre a guerra.
Há ainda outro fator apontado como uma decisão pouco calibrada pelo governo brasileiro. Para viajar a Pequim depois de ter se recuperado de uma pneumonia que lhe impediu de embarcar na data previamente combinada, o Itamaraty pediu que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, adiasse uma agenda oficial que teria em Brasília, algo que, na prática diplomática, não deixa de ser um indicativo de prioridades. Uma nova data para a visita de Von der Leyen está sendo negociada para junho.
Para críticos do tom adotado por Lula sobre as responsabilidades pelo conflito no Leste Europeu, é difícil manter um argumento de independência com tantos gestos a Pequim e Moscou. A sequência de acenos também afasta o petista da posição de neutralidade na guerra que ele alega adotar –o que dificulta a aspiração do líder brasileiro de ser um mediador ou facilitador de conversas entre Rússia e Ucrânia.
RICARDO DELLA COLETTA E NATHALIA GARCIA / Folhapress