Michel Houellebecq, o escritor neonaturalista queridinho dos pós-modernos, é considerado na França o atual enfant terrible, isto é, a criança que diz as coisas que os adultos não querem ouvir. Vamos ver o que ele tem a dizer sobre o Brasil. Existem dois comentários sobre o Brasil na obra de Michel Houellebecq, excluindo-se Serotonina, lançado esse ano e ainda não editado no Brasil. A primeira vez ocorre em As Partículas Elementares, de 1998 e editado no Brasil pela Sulina, considerado por parte da crítica o melhor livro do romancista francês; conta a história de dois irmãos, Bruno, que é viciado em sexo e acaba internado num hospício, e Michel, que é um gênio e faz a maior descoberta da história da humanidade.
Lá pela metade do livro, Bruno ouve de uma garota com que estava flertando num resort new-age que gostaria de visitar o Brasil – o que Bruno na hora encara como uma tentativa dela de parecer menos racista por ter dito logo antes que tinha zero interesse nas aulas de dança africana que ocorreria de tarde:
“Mais um pouco disso e Bruno ia se irritar. Ele estava começando a ficar puto com a estúpida obsessão que o mundo tinha com o Brasil. O que era tão ótimo sobre o Brasil? Até onde ele sabia, o Brasil era um buraco cheio de idiotas obcecados por futebol e Fórmula Um. Era pináculo da violência, corrupção e miséria. Se alguma vez houve um país digno de pena, esse país, especificamente, era o Brasil.
‘Sophie,’ anunciou Bruno, ‘eu poderia tirar férias no Brasil amanhã. Eu daria uma olhada na favela. O micro-ônibus seria blindado; então de manhã, seguro, sem medo, eu iria lá conhecer, ver os assassinos de oito anos de idade que sonham em crescer para serem gângsters; as prositutas de treze anos morrendo de AIDS. Eu passaria a tarde numa praia cercado de traficantes e cafetões podres de rico. Eu tenho certeza que numa sociedade tão passional, e para não dizer também, liberal, eu poderia livrar a civilização ocidental de sua mazela. Você tem razão, Sophie: eu vou direto num agente de viagens assim que chegar em casa.”
(tradução minha)
É uma cena horrível. Mas talvez seja verdadeira – turismo na favela já existe há muito tempo, e você não tem como saber quem está dividindo a praia com você; numa tarde lotada tanto em Ipanema quanto na Barra de Tijuca você com certeza está a poucos guarda-sóis de distâncias de bandidos. O que fica meio no ar nesse trecho é sua conclusão, quando fala em curar a civilização ocidental de sua mazela. Esse é o tema central de Michel Houellebecq: o mundo está doente. E para o escritor, como visto, o Brasil é o caso mais agudo desse mal, ou pelo menos seu maior exemplo.
O mal do mundo seria aquilo que Nietzsche também disse: Deus está morto. Com a Revolução Francesa, a humanidade substituiu suas divindades por nada; é nesse sentido que Nietzsche é niilista, assim como Houellebecq – não tem nada a ver com pessimismo ou uma visão necessariamente depressiva e misantrópica do mundo. Os filósofos quebram a cabeça tentando explicar esse fenômeno; Capitalismo e Esquizofrenia, de Deleuze e Guattari, é considerada por muitos a melhor análise do capitalismo desde Marx. É de uma incompreensão incomensurável – eu quase tive um aneurisma quando tentei ler. Faz Foucalt parecer João Cabral de Melo Neto. Por isso, diz Houellebecq, “troque seu filósofo por um bom romancista.”
É mais fácil mostrar do que tentar explicar. A dessacralização das culturas que chega com o Capital é exposta de maneira brilhante em seu Plataforma, lançado em 2001 e editado no Brasil pelo selo Alfaguara da Cia. das Letras, e cujo tema central é turismo. Explora-se como hoje, na verdade, a indústria do turismo tenha tornado-se um turismo para o não-local. Já não importa o local, o que espera-se é uma padronização da experiência, vista na disseminação dos resorts e o monopólio nas cadeias de hotelaria, liderada pela francesa Accor. Diz Houellebecq que o mundo está num processo de se parecer cada vez mais com um shopping center gigante – e os shopping centers estão cada vez mais com cara de aeroporto.
É a equalização de todos os valores: visita-se os vulcões em Lanzarote da mesma forma que se passeia nas favelas, faz-se um tour por todas as regiões de Jerusalém, com fotos de todo templo e toda gente. É a mesma lógica que permite imaginar uma tábua de argila pré-histórica, uma pintura renascentista e Das Kapital coabitando um museu. Em Plataforma, essa dessacralização chega ao seu ponto máximo quando a rede em que trabalham os mocinhos decide investir em turismo sexual, como se não fosse nada, apenas mais um tipo de resort agora disponível. É nesse livro que o Brasil é comentado pela segunda vez, quando um personagem diz já ter visitado São Paulo, no que Houellebecq eleva o Brasil de ápice da violência, da corrupção e da miséria, a ápice da evolução:
“– É curioso… – disse -, ficamos lá, dentro da empresa como bestas de carga muito bem alimentadas. E aqui fora estão os predadores, a vida selvagem. Uma vez estive em São Paulo: foi lá que a evolução chegou ao seu ponto máximo. Aquilo não é mais uma cidade, é um território urbano que se estende a perder de vista, com favelas, gigantescos edifícios de escritórios e residências de luxo cercadas de guardas armados até os dentes. São mais de vinte milhões de habitantes, muitos dos quais nascem, vivem e morrem sem nunca sair dos limites do seu território. As ruas são muito perigosas, mesmo de carro a gente corre o risco de ser assaltado no sinal vermelho ou perseguido por uma quadrilha motorizada: as mais bem equipadas têm até metralhadoras e lança-foguetes. Para se deslocar, os homens de negócios e as pessoas ricas utilizam quase exclusivamente helicópteros; há locais de pouso por toda parte, no topo dos prédios de bancos e dos imóveis residenciais. No nível do solo, a rua é território dos pobres – e dos bandidos.”
(tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht)
É curioso, de fato. O Brasil mais uma vez o país do futuro; uma história real de um absurdismo executado até o fim, a normalização de absolutamente tudo, o lugar onde o capitalismo deu mais certo. Aparentemente a brasilização do mundo seria para onde caminha a humanidade, segundo Houellebecq. Isso se nada for feito, claro. Na maioria de seus livros ele explora cenários em que, justamente, alguma coisa é feita – coisa que não é, necessariamente, conservadora.
Houellebecq busca explorar as hipóteses que nos são proibitivas. Em Submissão, lançado em 2015 no mesmo dia dos ataques do Charlie Hebdo e editado no Brasil também pela Alfaguara, a doença da civilização ocidental vê um horizonte de cura no que a vitória da Aliança Muçulmana nas eleições nacionais de 2022 na França encaminha o mundo para, enfim, uma reedição do Império Romano, com o eixo de poder na Europa deslocando-se para o sul, abarcando tanto a Turquia, quanto, futuramente, o Egito na União Europeia. Num outro livro, a saída revolucionária vai ainda mais além, e a humanidade decide pôr fim à própria existência para salvar o planeta.
É questionável se de fato chegará a esse ponto, mas de qualquer forma são interessantes as profecias de Michel Houellebecq. É o que lhe é perdoado por ter trocado a filosofia pelo romance; ele é só um escritor, e isso é tudo só imaginação dele, é claro. É o que lhe permite arriscar, escapar das limitações do rigor científico e desnudar de maneira inteligível o realismo inefável da experiência humana, oferecendo uma descrição não só visceral como elegante da lógica econômica que movimenta os fenômenos, capaz portanto de ver uma saída mesmo quando tudo parece perdido.
No fim, a grande mensagem de seus livros é como é possível, ainda assim, em meio a toda essa miséria e desigualdade, em meio a toda essa desgraça, a possibilidade do amor e da esperança, a possibilidade da alegria, e da compaixão. E se mesmo com isso em mente, mesmo tendo escrito tantos livros sobre a possibilidade de uma ilha, você ainda não entende a obsessão do mundo pelo Brasil, Houellebecq, você é um idiota.