… A Usina produzia a plenos vapores e o cheiro do “garapão” ¹ tomava conta de toda a fazenda.
Na cozinha, enquanto minha avó, que tinha dedos incrivelmente longos, batia a nata do leite, para fazer manteiga caseira, Cunga, a ajudante, fazia frangos caipiras deliciosos, no fogão a lenha.
À esquerda da casa, um pomar com manga, tangerina, limão, seriguela e ameixa amarela. Ao fundo, uma parreira com uvas verdes, sempre azedas. À direita, uma horta que tinha um pouco de tudo. E as galinhas! Algumas chocando, outras botando em cima dos poleiros sujos no quartinho escuro e sem janela em que eram recolhidas quando o sol se punha.
Descobri, depois de anos, que a casa que nas minhas memórias era imensa, na verdade tinha um tamanho normal. Três quartos, com portas duplas azuis, muito altas, um banheiro com banheira e uma janela de tamanho desproporcional. Porque que tão grande? – eu pensava.
O piso de vermelhão, sempre impecável e brilhante, dois alpendres ², um que dava pra rua, com direito a rede e mesinha que usávamos para os jogos de buraco dos finais de tarde e outro, na passagem para o quintal. Neste tinha uma pia e a torneira dava choque. Eu era vítima, mas como me achavam a fresquinha da capital, ninguém dava bola pras minhas queixas. Um dia, o tio que mais me tirava sarro, levou um choque daqueles e eu ri gostoso na cara dele!
Na sala de estar um móvel lindo, antigo que servia de apoio para a televisão P&B. Duas poltronas, uma marrom, do Marião – meu avô e a outra preta da D. Conceição, minha avó, um sofá vermelho encostado na parede, abaixo da janela pequena, de vidro martelado.
Sala de jantar com mesa de fórmica azul clara e oito cadeiras. Todas forradas com estampa de gosto duvidoso.
Meu avô tinha um fusca azul calcinha – igualzinho à mesa de fórmica. Chegava pra almoçar, parava o carro na rua – apesar da garagem enorme que tinha ao lado da casa – deixava aberto e com a chave dentro. Eu, achava aquilo sensacional. A representação máxima da tranquilidade do lugar.
Na frente da casa , um enorme gramado era cenário perfeito para mim e minhas Susis³. Nele, inventávamos histórias onde reis e rainhas eram perseguidos por cachorros gigantes – papéis desempenhados bravamente pela Puppy e a Quirei – as cachorrinhas da raça “Pequinês”, da família.
A Usina era uma verdadeira cidade. Tinha um clube recreativo, cinema, posto de saúde, armazém de secos e molhados (minha cabeça ficou uma confusão, quando surgiu a banda do Ney), farmácia, igreja, água tratada, campo de futebol, escola e muitas colônias.
Colônias eram corredores de casas onde morava a família dos trabalhadores da Usina. Algumas próximas à indústria, abrigavam o pessoal do escritório, funcionários da Usina em si, médicos, dentista. Nas outras, mais distantes moravam aqueles que trabalhavam no plantio e colheita.
Foi na Barbacena que descobri que Cacilda é nome de gente.
Oh, Meu Deus!!! Isso merece uma explicação:
Eu tinha um ano, quando mudamos para uma casa em que os vizinhos tinham uma cachorra chamada Cacilda. E até os nove, foi minha única referência. Um dia, sai com minhas primas para brincar e me apresentaram a Cacilda, irmã da Magali , ambas filhas de um funcionário da Usina. Corri pra casa, chamei minha mãe num canto e disse:
– Mãe, coitada! A menina tem nome de cachorro.
O cinema funcionava aos sábados. Para chamar a população, a música do filme “As Pontes do Rio Kwai” era tocada nas caixas de som que ficavam do lado de fora, a plenos pulmões. Assim sabíamos ter 10 minutos pra chegar e ocupar nossos lugares. Sentávamos num tipo de camarote improvisado no andar de cima, com 8 poltronas azuis marinho. Privilégio do gerente, cargo do meu avô. Lá assisti filmes muito antigos, todos precedidos do famoso Canal 100 – o cine Jornal da época. Não raro, o filme “partia”, as luzes se acendiam e o povo vaiava.
Lá fiz amigos que me lembro com carinho: A Eva, a Nenice, o Cirço. Seu Pernambuco, que cuidava da bomba, a Dona Lila – melhor amiga da minha avó – que tinha dos olhares mais doces da minha infância.
Quando eu era criança pequena lá na Barbacena, andava descalça, subia em árvore, tomava água do riacho, fugia da mula sem cabeça, vivia encardida de terra, chupava cana direto do pé, criava bonecos com barro na olaria, sonhava em nadar no açude – era proibido! Corria fugindo dos cachorros que andavam soltos, ria sem reservas, ficava de castigo pelas artes, pulava a janela pra fugir dos castigos, brincava o carnaval no clube e vaiava sem dó as sessões de cinema.
A felicidade morava na segurança do fusca do meu avô e na doçura do olhar da D. Lila. Tudo tão vivo na minha memória afetiva!
- Resíduo mal cheiroso originário da produção do açúcar e do álcool.
- Varanda, área coberta por telhado.
- Boneca fabricada pela Estrela, que precedeu a Barbie.