Semana de Design de Milão reflete crise climática e gentrificação em matadouro

MILHÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Um antigo matadouro de animais, erguido no começo do século 20 e desativado há décadas, com vegetação que cresceu de forma espontânea em meio a paredes com pichações de diferentes eras. O novo endereço da feira itinerante Alcova, a poucos quilômetros do centro, se confirmou como a sensação da Semana de Design de Milão, na Itália, encerrada no domingo (23).

Do lado de fora, filas imensas se formaram para ver cerca de 90 projetos apresentados por designers independentes, instituições de ensino e centros de pesquisa de vários países, muitos envolvidos na busca e na experimentação com diferentes materiais.

Em sua quinta edição, o evento é organizado por Joseph Grima, arquiteto e curador, e Valentina Ciuffi, diretora criativa de design.

Dentro, o clima de abandono -um cenário digno da série pós-apocalíptica “The Last of Us”- contrastava com o dinamismo de pesquisas como a do Atelier Luma, laboratório de biodesign do centro cultural francês Luma Arles.

O trabalho multidisciplinar voltado para o território produziu móveis e objetos feitos com resíduos agrícolas, como palha de arroz, sal, azeitona e uva. Mais que o resultado, o grupo defende que é o método, resumido em descobrir, conectar, envolver e compartilhar, que pode levar a soluções locais para crises climática e social.

Se juntam à intenção de rever modos predatórios de fabricação, consumo e descarte a cadeira compostável à base de cânhamo, vinda da Califórnia, e outra produzida na Itália pela One to One, com plástico reciclado, e vendida desmontada em embalagem -reciclada e reciclável- mínima.

As luminárias do estúdio brasileiro Rain, de resina à base de óleo de mamona, reinventam um material da construção civil desenvolvido na USP como alternativa a derivados de petróleo.

O otimismo de peças funcionais, cujos processos são tão ou mais relevantes que a forma, dividiu espaço com mobiliário de aspecto bruto, ainda que domado. Caso da coleção Pulkra, que criou uma mistura de cimento pigmentado com areia de mármore, para móveis escuros de traços finos, e das peças de Arthur Vandergucht, feitas com chapas de metal dobradas.

O metálico, seja pelo uso do aço e do alumínio, seja pela sua aparência, como no pufe conceitual da Lashup, parece ter roubado o protagonismo da madeira, uma espécie de predominância do frio sobre o caloroso. Ou, como o estúdio milanês NM3 descreve sua longa mesa de aço-inox, se trata de uma resposta contra o aconchego corporativo, para uma nova sobriedade.

Abandono, brutalidade e frieza, presentes na Alcova, podem ser lidos como uma reação às múltiplas crises que precederam a semana de design. Em sete dias, Milão recebeu o Salão do Móvel, feira do segmento mais importante do mundo, e o Fuorisalone, com cerca de mil eventos paralelos. O número de visitantes da feira foi de 307 mil, de volta a níveis pré-pandêmicos.

Em uma cidade de 1,3 milhão de habitantes que passa por uma crise imobiliária, empurrando estudantes e classe média para a região metropolitana, é um impacto e tanto. Na imprensa e nos memes, não faltou perplexidade diante de aluguéis temporários de até EUR 500, cerca de R$ 2.800, por noite.

A própria Alcova entrou no debate ao afirmar que seu caráter itinerante era uma tentativa de combater o risco de gentrificação, tanto para a futura participação de designers emergentes quanto nos bairros. No caso do ex-matadouro, talvez seja tarde demais, porque a área de 150 mil metros quadrados irá se transformar em um empreendimento de 1.200 apartamentos, com a promessa de que parte será acessível para estudantes e famílias de baixa renda.

Esta é só a crise mais local. Na regional, a emergência climática, traduzida em seca nos rios do norte da Itália, é uma realidade. No país, se fala em crise migratória, devido ao fluxo crescente de refugiados que cruzam o Mediterrâneo rumo à Europa. No continente, a guerra na Ucrânia trouxe o risco de crise energética e inflação -a crise do custo de vida.

Talvez por isso o aspecto de destruição tenha permeado não só a Alcova. Na Dimore, referência internacional em design de interiores, que ocupa um apartamento no elegante bairro Brera, a comemoração dos 20 anos aconteceu com uma instalação descrita como “apocalíptica, mas muito sofisticada”, em que móveis de design histórico do século 20, sobrepostos e desordenados, habitavam paredes descascadas.

Mesmo o celebrado japonês Oki Sato, do estúdio Nendo, apostou no estrago, ainda que calculadíssimo. Em parceria com o artista americano Daniel Arsham, Sato criou peças robustas de isopor que foram parcialmente marretadas por Arsham, fazendo surgir novos usos -a banheira perdeu pedaços e virou um banco-, em um ambiente todo branco e clean. A ideia é que os protótipos virem uma coleção limitada feita de gesso.

No espaço Nilufar Depot, tudo depende do ponto de vista do observador. A coleção de móveis e objetos feitos com uma resina especial translúcida, assinada pela dupla greco-americana do Objects of Common Interest, ganha, após polimento manual, um acabamento iridescente, furta-cor, que muda suavemente de cor e intensidade conforme a luz e a posição de quem olha.

Em sua primeira participação na semana de design de Milão após a morte do irmão Fernando -que foi homenageado em uma cerimônia na Triennale-, Humberto Campana mostrou novas versões para peças da coleção Objets Nomades, da Louis Vuitton.

O sofá Bomboca ganhou cobertura metalizada reluzente, e a poltrona-balanço foi revestida de mosaico espelhado, no estilo globo de pista de dança. No acumulado de crises, adicionar ainda mais brilho também vale como resposta.

MICHELE OLIVEIRA / Folhapress

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