VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – No breu de uma catedral, até as teias de aranha parecem douradas. Os fios finíssimos da obra de Lygia Pape lembram raios de luz atravessando a escuridão, uma presença quase ausente que se revela pelo reflexo fragilíssimo dos holofotes.
Um dos clássicos da trajetória da artista brasileira, a peça montada agora na Punta della Dogana, um dos museus do bilionário francês François Pinault em Veneza, na Itália, é o avesso iconoclasta da ideia central da mostra em cartaz.
Enquanto as obras ao redor tratam da potência dos ícones, dos rostos emblemáticos da tradição religiosa ao mais banal dos crânios como traço de humanidade que resiste nos ossos, Pape reduz a potência de um santo aos raios dourados que o circundam no visual da liturgia.
É o rastro luminoso, o efeito catártico de certa transcendência espiritual, que domina algumas das obras mais fortes da exposição. A obra de Pape, com fios de ouro que se destacam na penumbra como raios moldados por uma geometria delicadíssima, é o abre-alas da mostra, flanqueada por uma tela de Lucio Fontana e outra instalação de Donald Judd.
Fontana, um dos mestres da arte do século 20, dessacraliza a superfície da pintura, desfaz a noção aurática da peça tocada pela mão do artista para criar um corpo aberto ao espaço, uma tela cheia de buracos, apunhalada e atravessada pela luz que revela a pele frágil que é uma pintura ao mesmo tempo que exacerba o esplendor que se esconde atrás.
Há um grau de violência no ataque de Fontana ao corpo da pintura que, na dimensão religiosa dessa catedral profanada, lembra os pregos atravessando o corpo de Cristo -uma imagem, aliás, que volta e meia, nas mais sublimes das variações, ressurge ao longo da mostra.
Mesmo os quadrados de aço esmaltado de Judd, artista americano que foi um nome central do minimalismo, respeitam a divisão espacial desenhada pela cruz, o rigor industrial como eco da ordem divina. Talvez seja quase blasfêmia ler um trabalho de Judd à luz da religião, mas não está nada distante do ideal sacro a sua devoção plena à beleza estrutural da geometria, ângulos retos que acalmam o espírito.
Esse trio de trabalhos, de Fontana, Pape e Judd, sintetizam com força a ideia de dissecação dos ícones que guia a mostra. Eles são iconoclastas ao esfacelar o poder da santíssima imagem, rendida à força de seu impacto. É como se a potência espiritual, aquilo que um devoto sente em comunhão com o sagrado, falasse mais alto do que o corpo mesmo em carne e osso do santo.
Isso em Veneza tem um peso extraordinário. A cidade de igrejas magníficas, uma delas a basílica de Santa Maria della Salute ao lado da antiga alfândega transformada em museu pelo arquiteto japonês Tadao Ando, tensiona esse sentimento do divino, a carnalidade de uma cidade arrasada pela peste no passado e eternizada na literatura e no cinema como o lugar onde a beleza se faz tamanha que sufoca o corpo -basta lembrar o livro de Thomas Mann e o filme de Luchino Visconti.
É nesse ponto que parece tocar um enorme prego dourado exibido numa vitrine, obra do artista conceitual americano James Lee Byars. Ele opera no campo do resquício e da memória, trabalhando menos uma presença e mais a violência que aflige o ícone ausente, a materialização da tragédia pela arma do crime.
E são muitos os crimes e pecados. Se há o prego que atravessa a carne, há o corpo da maior democracia do mundo retalhado pela violência. O artista vietnamita Dahn Vo, um dos nomes mais relevantes da arte contemporânea que já teve no mesmo museu uma retrospectiva memorável, mostra uma bandeira americana cheia de buracos, um deles revelando por trás a imagem de uma santa.
Vo nos convida a examinar a ferida, como aquele que guia o dedo incrédulo para dentro da chaga de Cristo. E ao mesmo tempo destrói um ícone, no caso, a bandeira americana como estandarte inconteste do Ocidente e da ordem global. É o mesmo artista que já esquartejou como açougueiro uma réplica da estátua da Liberdade e exibiu seus restos metálicos como fiapos de uma carcaça ao redor do mundo.
Em Veneza agora, sua obra ganha ares barrocos ao juntar num mesmo plano o mais agressivo dos símbolos imperialistas e a mais singela e ao mesmo tempo destrutiva das imagens de dominação da Igreja Católica, a Virgem com o menino Jesus.
Noutra instalação, Vo explora as cicatrizes deixadas pela religião. Ele pendurou do teto retalhos de veludo descartados pelo Vaticano, tecidos onde antes estavam apoiados crucifixos e outros objetos litúrgicos que deixaram sua marca impressa no pano pela incidência da luz solar, mais uma vez o rastro no lugar do ícone.
Perto de seus estandartes fantasmagóricos, o italiano Rudolf Stingel tem um painel prateado marcado por incisões deixadas pelo público, um lento processo de escarificação, vitrine do gesto de rasgar na carne a sua marca.
Esses rabiscos e linhas escritas na superfície metálica lembram os não escritos da americana Agnes Martin, outro nome incontornável da mostra. Numa galeria só dela, a minimalista tem uma série de telas abstratas que respeitam uma geometria singular. Suas pinturas lembram palavras dispostas numa página, um texto indecifrável, de pura densidade formal, que expressa mais na ausência do vocabulário e na presença do gesto o que poderia dizer o registro bíblico.
Beleza semelhante está na sala reservada às pinturas do minimalista americano Robert Ryman. É uma série de telas coloridas dominadas por espessas manchas de tinta branca que são mais um registro do gesto do que a expressão da cor. Nessa imensidão esbranquiçada e vazia de Ryman está o histórico de uma presença, o lastro do toque de um artista que domina a língua do silêncio.
Suas janelas para o vazio, o branco tempestuoso que arrisca transbordar para fora dos limites do quadro, são o testemunho de uma vontade irrefreável, o caos que se agita debaixo de uma superfície calma só na aparência. Essas foram as últimas pinturas de Ryman, uma espécie de despedida do artista morto na última década que deixa nessas obras de puro gestual na mais neutra e luminosa das cores uma marca ruidosa de sua presença, um lamento que lembra a sonoridade do jazz em seus agudos e graves.
Esse rastro de uma presença ora ausente se transforma em joia e sudário nos estertores da mostra. De um lado, a americana Sherrie Levine mostra em vitrines crânios de vidro polidíssimos, como peças de luxo. De outro, Paulo Nazareth, um dos artistas brasileiros mais relevantes dos últimos tempos, aparece
soterrado por crânios, todos de vítimas negras da violência do país. Ao lado, um trapo traz a palavra “oublié”, esquecido em francês. É o sudário dos insepultos.
SILAS MARTÍ / Folhapress