SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Dois livros lançados recentemente trazem visões complementares sobre a história do Pantanal e das famílias que participaram do processo que conectou a região com o resto do Brasil ao longo dos séculos 19 e 20.
“Memórias de um Pantanal”, obra da jornalista Teté Martinho em edição bilíngue (português-inglês), traça um retrato mais amplo da ocupação do território pantaneiro. Sua narrativa começa com os primeiros contatos entre europeus e indígenas naquele território, nas primeiras décadas do século 16, e chega até o momento atual, com atenção especial dedicada à região do rio Negro, no sudeste da planície alagável.
Já “Pantanal: Reminiscências de Nossas Vidas” é uma nova edição das memórias de Izabel de Arruda Viégas (1919-2013). Junto com o marido, José Gomes Viégas, ela se tornou pecuarista numa das áreas mais isoladas do interior sul-mato-grossense a partir dos anos 1930, criando ali seus filhos.
Ambos os livros foram publicados pela iniciativa Documenta Pantanal, cujo objetivo é ampliar a divulgação de informações sobre a região.
Embora a autobiografia de Viégas seja sobretudo um relato a respeito das últimas três gerações de sua família e dos pantaneiros com quem conviveram, o livro de Martinho também contém uma proporção considerável de histórias familiares, em especial a do clã iniciado por Cyríaco da Costa Rondon (parente distante do militar e indigenista marechal Cândido Rondon, que o chamava de tio).
Na Fazenda Rio Negro, propriedade de Cyríaco e seus herdeiros, seria construído o icônico sobrado que aparece em ambas as versões da novela “Pantanal”.
O destaque dado à trajetória de famílias individuais pode parecer estreito demais do ponto de vista histórico, mas faz sentido quando se considera como o Pantanal foi sendo incorporado à economia e à sociedade do resto do país. As vastas áreas alagáveis, com seus campos naturais, eram vistas como um ambiente apropriado para o desenvolvimento da pecuária extensiva.
Além disso, o baixo valor da terra até as primeiras décadas do século 20 permitia que um número relativamente reduzido de criadores pioneiros conseguisse a posse legal de milhares de hectares sem muita dificuldade.
No entanto, essas imensas propriedades não surgiram num vácuo. A vocação do Pantanal para a criação extensiva de gado, conforme conta Teté Martinho, foi resultado de um processo complexo, que também contou com a participação dos povos indígenas da região e acabou se beneficiando da espoliação territorial deles.
De fato, quando portugueses e espanhóis chegaram às terras pantaneiras, não havia mais rebanhos de mamíferos de grande porte ali fazia quase 10 mil anos (foi quando desapareceu a chamada megafauna sul-americana, no fim da Era do Gelo). Mas a permanência dos campos naturais na região fazia dela um ambiente propício para grandes herbívoros.
Foi assim que, quando bois, cavalos e porcos dos primeiros assentamentos coloniais começaram a fugir, por descuido ou durante conflitos e desastres naturais, populações desses bichos rapidamente se tornaram selvagens no Pantanal.
Algumas delas voltaram a ser domesticadas por etnias indígenas como os guaicurus (ancestrais dos atuais kadiwéus), que se tornaram cavaleiros e impuseram dura resistência aos empreendimentos colonizadores. Outros grupos nativos, como os paiaguás, aproveitavam os rios e as zonas alagadas para realizar ataques de surpresa contra os invasores.
As expedições escravistas dos bandeirantes de São Paulo, o breve ciclo do ouro na região de Cuiabá e as disputas fronteiriças entre os impérios português e espanhol levaram à destruição de boa parte das populações indígenas e à paulatina incorporação do território pantaneiro ao resto do Brasil. Esse processo se intensificou após a Guerra do Paraguai (1864-1870) e com o crescimento populacional e industrialização do país.
Os centros urbanos do começo do século 20 criavam uma demanda para o consumo de carne –durante muito tempo, na forma de charque– que as fazendas pioneiras do Pantanal buscaram atender. Conforme narram ambos os livros, a criação desse nexo econômico esteve longe de ser um processo fácil, mesmo para os que conseguiram terras vastas na região.
A obra de Izabel Viégas leva o leitor a mergulhar no cenário dessa época, retratando as tremendas dificuldades de transporte no lombo de cavalos ou em carros de boi, as dificuldades de acesso a tratamento médico, a segurança precária.
Trata-se de um lembrete impressionante de que, no período em que o mundo enfrentava a Segunda Guerra Mundial, regiões enormes do país ainda levavam uma vida que pouco diferia das condições encontradas no Brasil-Colônia.
Ambos os livros talvez pequem, em diferentes graus, ao romantizar em demasia os clãs pantaneiros, seja em sua coragem de desbravadores, seja pela capacidade de criar um sistema econômico com baixo impacto sobre os ecossistemas da região. De qualquer modo, as duas obras trazem contribuições valiosas para a compreensão de uma das paisagens naturais e humanas mais fascinantes do mundo.
MEMÓRIAS DE UM PANTANAL
Preço: R$ 60 (edição impressa; o ebook pode ser baixado gratuitamente no site do projeto); 296 págs.
Autoria: Teté Martinho
Editora: Documenta Pantanal
Link: https://documentapantanal.com.br/wp-content/uploads/2023/02/Memórias-de-um-pantanal.pdf
PANTANAL: REMINISCÊNCIAS DE NOSSAS VIDAS
Preço R$ 40; 148 págs.
Autoria: Izabel de Arruda Viégas
Editora: Documenta Pantanal
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress