‘Documentos do Afeganistão’ é passeio superficial pela guerra

FOLHAPRESS – Em 2019, um trio de repórteres comandado pelo jornalista Craig Whitlock publicou um conjunto de seis reportagens baseadas em entrevistas até então secretas de políticos, militares e autoridades americanas envolvidas com a Guerra do Afeganistão.

Elas foram obtidas pelo jornal The Washington Post após uma batalha legal de três anos, em que prevaleceu o espírito do Ato de Liberdade de Informação, a pedra angular da transparência governamental nos Estados Unidos desde 1967, imitada com diversos graus de sucesso em vários países, como o Brasil.

O mais longo conflito em que os EUA já se envolveram completava àquela altura 18 anos, e era evidente que a Casa Branca não sabia o que fazer com o país que invadira em resposta aos atentados do 11 de Setembro, em 2001.

Os chamados Papéis do Afeganistão traziam, com candura quase constrangedora, depoimentos de cerca de 400 pessoas colocando a nu o que se intuía: o governo mentia sobre os rumos da guerra, para a qual nunca teve uma estratégia coerente. Eram entrevistas para um programa interno do governo, o Lições Aprendidas, cobrindo o período de 2014 a 2018.

O trabalho foi aclamado, de forma justa, embora traia no seu título a pretensão que marca o jornalismo investigativo americano, que de resto inspira todo o Ocidente: ele remete aos Papéis do Pentágono, muito mais importantes documentos que, expostos em 1971, dissecaram outra guerra impossível de vencer, a do Vietnã.

Se é desejável que todo repórter deste campo tenha a ambição de revelar o próximo “Papéis do…”, ou derrubar um presidente como o vazamento do caso Watergate, um pouco de humildade cai bem. O trabalho do Post é notável, mas não mudou fundamentalmente a compreensão do conflito.

Dois anos depois, Whitlock resolveu ampliar o escopo do trabalho, reunindo os papéis em um livro com três conjuntos extra de documentos: uma coleção dos “flocos de neve”, memorandos curtos redigidos pelo então secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, entre 2001 e 2006, também obtido por vias legais do Arquivo de Segurança Nacional, entrevistas abertas de soldados a um projeto do Exército americano e conversas com ex-funcionários afegãos da embaixada americana em Cabul.

O livro chega agora ao Brasil sob o título “Documentos do Afeganistão”, mas o subtítulo mal traduzido entrega a pretensão associada à obra, de forma involuntária: “A História Secreta da Guerra”. No original em inglês, é o muito mais apropriado “Uma História Secreta da Guerra”.

A culpa talvez não seja de Whitlock, que deixa claro já no prefácio que não se pretende expor todos os lados ou ser um historiador de amplo espectro do conflito aberto por George W. Bush e enfim encerrado por Joe Biden com a atabalhoada retirada de 2021, que permitiu a volta triunfal do Talibã ao poder do qual havia sido chutado em 2001.

Para quem não leu as reportagens originais, é uma forma concisa de passear pela incapacidade decisória e a franqueza de discussões dos americanos. Mas falta um tanto de contexto, que parece remeter a um autor tão encantado com sua matéria-prima que se esquece de lapidá-la.

Um exemplo é a própria origem da invasão, a primeira ação da chamada Guerra ao Terror. O Talibã havia dado abrigo à rede terrorista Al Qaeda, executora do 11 de Setembro, mas não havia indício de participação ou conhecimento dos ataques.

Quando o regime fundamentalista aberrante, no poder desde 1996, se recusou a entregar Osama bin Laden, um alvo legítimo para a vingança americana pelo maior ataque terrorista contra seu solo estava dado. Mas ninguém tinha ideia, como as entrevistas mostram, com que estavam lidando.

O relacionamento com os chamados senhores da guerra rende passagens divertidas, com autoridades não sabendo se davam mais dinheiro para crápulas como Abdul Rashid Dostum ou o mandavam matar.

Igualmente sardônicos são os “flocos de neve” de Rumsfeld, como um em que ele admite que os EUA “são um fracasso em inteligência humana”.

Isso dito, é um passeio pela superfície da história, e não um mergulho profundo e detido sobre causas e consequências. A edição ágil dá bom ritmo à leitura de 321 páginas, mas há um certo gosto de History Channel no produto, e isso não é um elogio.

Até por não ter fontes primárias após 2018, o crucial processo de entrega de pontos por Biden é relegado a duas páginas no abrupto fim do livro. Ainda assim, combinado com outras obras igualmente incompletas, como o bom “A Mais Longa Guerra”, de Peter Bergen em 2011, o trabalho de Whitlock tem seu valor.

Trazendo o melhor (a busca pela verdade atrás dos fatos) e o pior (a pretensão e a ligeireza) do jornalismo investigativo, o livro ajuda a compor um quadro sobre o período que definiu o início do século 20 —se você tem dúvida do impacto da Guerra ao Terror, tente entrar num avião com um alicate de unha, para ficar no anedótico.

DOCUMENTOS DO AFEGANISTÃO – A HISTÓRIA SECRETA DA GUERRA

Avaliação Regular

Preço R$ 85,90 (368 págs.)

Autoria Craig Whitlock

Editora Alta Books

IGOR GIELOW / Folhapress

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