TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Mais de uma vez por dia, o agricultor Bruno Lopez, 57, renova suas esperanças e, segundos depois, se frustra ao acessar o aplicativo do serviço meteorológico da França em busca de alguma previsão de chuva.
“Agora, diz que vai chover daqui a dez dias”, aponta ele, com o dedo na tela do celular. “Quero acreditar, mas a verdade é que, a cada acesso, essa previsão reaparece mais e mais para a frente”, lamenta Lopez à sombra de um pessegueiro fincado na terra esturricada da fazenda onde cultiva também damascos, kiwis e maçãs nos arredores de Corbère-les-Cabanes, na região dos Pirineus Orientais, no sudoeste da França.
Uma seca histórica tem castigado essa região francesa que fica perto da fronteira com a Espanha, país que encara uma onda de estiagem e de calor inéditos para esta época do ano.
“A situação já é dramática nessa região, mas, se não tivermos chuva em maio, o problema se estenderá para outras áreas do país, de Bordeaux até Marselha”, afirma o hidrólogo David Labat, professor da Universidade de Toulouse, no sul da França.
A previsão é que a chegada do verão europeu torne o quadro ainda mais severo. “Já existe uma ampla consciência de que este será um verão muito difícil”, diz Labat.
Depois da escassez de chuvas registrada em 2022 na França e da falta de neve que fez estações de esqui fecharem em plena temporada de 2023, a situação se agravou de tal maneira nos Pirineus Orientais que autoridades locais implementaram medidas de crise sem precedentes, com grande impacto na rotina dos moradores.
Há três semanas, os reservatórios que abastecem Corbère-les-Cabanes e as vilas vizinhas ficaram tão baixos que acabou a água potável da cidade. A prefeitura proibiu o consumo de água da torneira e passou a distribuir garrafas de água mineral a seus 1.250 habitantes. A conta é de uma garrafa de 1,5 litro por dia para cada um dos moradores.
“Não temos alternativa. É uma questão de saúde”, afirmou à reportagem o prefeito de Corbère-les-Cabanes, Gérard Soler, durante a distribuição de água aos moradores na última quinta-feira (27). “Tive de pegar recursos de outros setores para essa compra imprevista de água. O gasto é de 3.500 euros [cerca de R$ 19 mil] por semana, e ainda não se sabe até quando.”
Nos dias e horários informados por meio de um aplicativo, acontece a peregrinação ao galpão da prefeitura onde ocorre a distribuição da água, de acordo com o número de moradores de cada casa.
Irritados, assustados ou resignados, os moradores vêm e vão com suas garrafas para o consumo da semana. Forçados a criar adaptações de emergência, eles agora também convivem com incertezas sobre um futuro mais próximo do que previam.
“Sempre me alarmou o debate sobre aquecimento global e mudanças climáticas, mas nunca imaginei que fosse passar por algo assim tão logo”, admite Eliane Guinchard, 44, enquanto acomoda 24 garrafas de água no porta-malas do seu carro. “Dá muito medo porque não sabemos como essa situação vai evoluir.”
No único café da cidade, Thomás da Costa, 31, teve de desligar a grande máquina tradicional de café expresso e substituí-la por pequenas cafeteiras alimentadas pela água mineral engarrafada. Nas casas, além do consumo, a água mineral agora também é usada para escovar dentes e lavar frutas e verduras.
Há pouco mais de um mês, já havia sido proibido na região o uso de água da torneira para molhar jardins, encher piscinas e lavar carros ou calçadas. Qualquer economia conta.
“Não consigo mais cuidar do meu jardim, preciso programar o uso da máquina de lavar louça e já não posso mais tomar banho quando quero. É um desastre”, reclama Gérard Riborollo, 57. “Faz quase seis meses que não cai uma gota de chuva. E, se cair alguma coisa agora, também não vai resolver o problema”, lamenta, carregando suas seis garrafas de água para casa.
O prefeito Soler diz que precisa “antecipar os próximos passos”. “Se chegar a faltar água nas torneiras, vamos colocar 12 tanques de mil litros de água em pontos estratégicos da cidade para que a população possa se abastecer com baldes para a cozinha, o banho e a descarga”, explica ele, que já encomendou os 12 tanques, mas diz torcer para que eles tenham outro destino.
Além da falta de água, os Pirineus Orientais vivem também uma antecipação da temporada de queimadas, favorecida pela estiagem e pelo ressecamento da vegetação. Com isso, qualquer foco de incêndio vira, literalmente, fogo no palheiro, com propagação rápida.
Desde meados de abril, a região já teve três grandes incêndios.
Em visita à região na semana passada, o ministro da Transição Ecológica da França, Christophe Béchu, avaliou que a região “está vivenciando por antecipação o que parte dos departamentos ao redor do Mediterrâneo provavelmente vivenciará” até o verão, quando ocorre historicamente a estiagem na Europa.
A afirmação do ministro encontra respaldo em um estudo divulgado em março pelo Escritório de Pesquisas Geológicas e Minerais (BRGM) da França, que monitora os lençóis freáticos do país.
Segundo o BRGM, três quartos dos lençóis freáticos estão abaixo do nível normal para este período do ano, sendo que 20% estão em um nível considerado “muito baixo”.
“Isso é preocupante porque afeta toda a França”, explica a hidróloga Violaine Bault, do BRGM.
Enquanto a preocupação geral está nos rios secos e no baixo nível das represas, Labat ressalta que é nos lençóis freáticos que está o problema mais grave, porque são eles que abastecem as águas de superfície.
“Cada um litro de água na superfície corresponde a cerca de 100 litros de água subterrânea, mas o fato de ela não estar visível faz com quem só nos preocupemos quando já é tarde”, avalia ele.
O climatólogo Davide Faranda, da Universidade de Paris-Saclay, explica como o fenômeno das secas prolongadas e de inundações recorrentes se relaciona às mudanças climáticas.
“O aquecimento da atmosfera por conta da maior presença de gases de efeito estufa altera o regime de ventos e os padrões de chuvas”, afirma. “O que temos observado é que as regiões desérticas, para onde os ventos não levam chuvas, estão se movendo para o norte. E, neste caso, o deserto do Saara está se movendo para o Mediterrâneo”, diz ele, que dirige um centro de estudos de eventos climáticos extremos.
Segundo Faranda, desde 2017 os cientistas observam que os períodos de seca se alongaram e são pontuados por tempestades episódicas e violentas. O problema é que as águas desses temporais não alimentam os aquíferos da mesma maneira que as chuvas mais suaves e persistentes, em que as águas têm tempo de penetrar o solo.
“Hoje podemos até ter a mesma quantidade de chuvas ao final do ano, mas sua distribuição é diferente, e essas águas das tempestades vão direto para os rios.”
Na última sexta (28), o governador da região dos Pirineus Orientais, Rodrigue Furcy, anunciou um pacote de medidas para preservar ao máximo a água disponível -que precisa durar mais seis meses, até o final do verão europeu. Ele diz querer evitar “conflitos de uso ou uma guerra pela água”.
Parece exagero, mas a disputa por fontes de água potável irromperam de maneira violenta na França em março passado.
Um protesto de ativistas contra o projeto de um enorme reservatório de água para fins agrícolas em Sainte-Soline, no oeste, virou uma batalha contra as forças de segurança e terminou com duas pessoas em coma e dezenas de feridos, entre manifestantes e policiais. Os ativistas afirmam que o reservatório vai privatizar um recurso natural essencial, desequilibrando o acesso à água.
“Quando começar a faltar água de verdade, os conflitos tendem a se acirrar ainda mais”, prevê o hidrólogo Labat.
O confronto de Sainte-Soline acelerou o anúncio do presidente Emmanuel Macron de um plano nacional de água, num contexto em que a atual disponibilidade de recursos hídricos na França é 14% menor do que há dez anos.
Estudos apontam que o volume de água nos rios e em lençóis freáticos do país deve cair mais 30 ou 40% até 2050. “Nada indica que a situação vá melhorar”, enfatizou o presidente durante o anúncio de 53 medidas para economizar o recurso.
Entre elas, estão a criação de uma tarifa progressiva de consumo e projetos que aumentem a capacidade de reutilizar recursos hídricos. Hoje apenas 1% da água consumida na França é fruto de reutilização, contra 8% na Itália e 14% na Espanha. A meta de Macron é chegar a 10% até 2030.
O presidente anunciou também o investimento de 180 milhões de euros para conter vazamentos nos sistemas de abastecimento, e linhas de crédito para sistemas de irrigação mais econômicos.
Em Corbère-les-Cabanes, Bruno Lopez diz estar à beira de perder a produção do ano. “Nesta época do ano, pêssegos, damascos e nectarinas precisam ser irrigados todos os dias”, explica.
“Se a água não voltar logo, terei de arrancar todas as frutas do pé para tentar salvar as árvores”, afirma, em tom de desespero, antes de pegar o celular para consultar, mais uma vez, a previsão do tempo.
FERNANDA MENA / Folhapress