RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Dado Villa-Lobos lembra do porteiro de seu prédio lhe entregando o jornal do dia 20 de junho de 1988, que trazia na capa: “Legião Urbana, a violência na volta à casa”. Era uma reportagem sobre o show que a banda havia feito dois dias antes no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, e que foi interrompido por uma série de problemas que levou a um quebra-quebra generalizado.
Naquela primeira página, a noite era descrita em termos como “péssimo comportamento do público”, “amadorismo da produção”, “batalha campal”, “bombas, cavalos e pessoas pisoteadas”.
O evento trágico acabaria se tornando um marco inicial de um momento da banda que gerou os discos “As Quatro Estações”, de 1989, e “V”, de 1991. Álbuns agora lembrados e celebrados na turnê “As V Estações”, que começa sexta-feira em Sorocaba, no interior paulista, e no sábado chega a São Paulo, no Espaço Unimed.
À frente do projeto, o guitarrista Dado e o baterista Marcelo Bonfá, que com Renato Russo, morto em 1996, formavam a Legião Urbana.
Desde 2015, quando teve início a primeira das turnês que Dado e Bonfá vêm promovendo sobre os discos do grupo, corre em paralelo uma batalha judicial. Giuliano Manfredini, filho de Renato, pediu na Justiça que a dupla pagasse a ele um terço dos lucros do projeto, alegando o uso da marca Legião Urbana, da qual ele é detentor.
A última decisão, em outubro do ano passado, foi favorável aos músicos, que desde o início alegam que nunca se apresentaram como Legião Urbana depois da morte do vocalista. O caso ainda será julgado novamente Tribunal de Justiça do Rio Janeiro após o último entendimento do Superior Tribunal de Justiça
“A Legião Urbana deixou de existir no dia em que o Renato partiu, a banda não existe mais”, diz Dado. “O objetivo do nosso projeto sempre foi manter viva a nossa história, celebrar nossas músicas e satisfazer a um desejo enorme do público”.
De lá para cá, Dado ainda pensa na manchete de jornal ao lembrar de ‘As Quatro Estações’. “Depois disso, houve uma impressão de que estávamos acabados, de ver no jornal o Lulu Santos falando algo assim da gente, meio desprezando. E então fizemos ‘Há Tempos'”.
“A gente começou a evoluir na pesquisa de sons, experimentação de teclados, timbres novos”, diz o baterista. Havia ali uma crise que indicava o que Bonfá, em retrospectiva, descreve como “o princípio do fim”.
Entre um disco e outro, Renato recebeu o diagnóstico de HIV, o que impactou não só a ele, mas a toda a dinâmica do Legião.
O gigantismo da banda também parecia os afastar do espírito original. “Começamos a tentar compor para o ‘V’ no estúdio, cada um num aquário, ouvindo um ao outro pelo fone. Mas falei: ‘Não dá para compor desse jeito, tenho que sentir vocês’. Sentamos juntos, um de frente para o outro, e aí o disco saiu.”
Em paralelo, o baixista Renato Rocha foi expulso da banda durante as gravações de “As Quatro Estações” pela falta de comprometimento. A dependência química de Renato também tornava difícil o convívio e o trabalho.
Por outro lado, a banda atingia, na virada para os anos 1990, uma maturidade que a levou para lugares até então inexplorados, tanto em termos de música como de poética. “Eu usei bandolins, tentamos outros andamentos, harmonias mais elaboradas, canções sem refrão. Eu estava estudando violão, as inversões de acorde de João Gilberto. No ‘V’ fomos para uma onda mais progressiva.”
Nas letras, a revolta e energia punk dos primeiros anos dava espaço para versos mais existenciais e espirituais. “Antes era uma questão terrena, juvenil muitas vezes. Mas no ‘As Quatro Estações’, Renato veio com Buda, Bíblia, Camões. Não sei rezar nem Pai Nosso, sou agnóstico, mas isso é lindo e universal”, diz o guitarrista.
“Nas gravações do ‘As Quatro Estações’, de vez em quando o pessoal do Paralamas pintava lá com uma bola e a gente jogava um vôlei de estúdio, usando um biombo móvel como rede”, conta Bonfá. De noite, a distração era outra: “Assistíamos todo dia juntos à novela ‘Vale Tudo'”.
O repertório que testemunha esse momento estará no palco na turnê “As V Estações”, a terceira de Dado e Bonfá sobre a discografia da Legião. Em 2015, eles celebraram em shows o álbum de estreia. Três anos depois, voltaram aos palcos com um show sobre os discos “Dois” e “Que País é Este”.
Como nas turnês anteriores, Dado e Bonfá têm a companhia de André Frateschi no vocal, Lucas Vasconcellos na guitarra e Mauro Berman, que é diretor musical e baixista, além do estreante Pedro Augusto nos teclados.
Juntos, eles passeiam por hits do “As Quatro Estações”, como “Meninas e Meninos”, “Pais e Filhos”, “Há Tempos”, “Monte Castelo”, “Quando o Sol Bater na Janela do teu Quarto”) e do “V”, caso de “Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral” e “O Mundo Anda tão Complicado”.
O repertório inclui também canções menos conhecidas dos dois discos e nunca tocadas antes ao vivo por eles, como “Eu Era um Lobisomem Juvenil”. Além, é claro de clássicos de outros álbuns que não podem faltar, como “Tempo Perdido” e “Por Enquanto”.
“Os arranjos são fidelíssimos aos originais. A banda é toda analógica, não tem nada digital. É tipo antigamente”, diz Dado, pontuando uma diferença. “Naquela época estávamos amadurecendo, ficando mocinhos. E agora estamos amadurecendo, mas ficando velhos”.
LEONARDO LICHOTE / Folhapress