Moradores de ruas ocupadas pela Cracolândia relatam rotina de medo

São Paulo - Região entre a Estação da Luz e o Viaduto Santa Ifigênia, conhecida como Cracolândia (Rovena Rosa/Agência Brasil)

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quase um ano após a operação policial que dispersou a cracolândia da praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, moradores de oito ruas da região que foram ocupadas em momentos diferentes pelos usuários de drogas relatam mudanças drásticas na rotina diante da nova realidade na porta de casa.

Em comum, todos concordam em um ponto: deixar de sair à noite virou uma espécie de regra para reduzir os riscos diante do aumento da criminalidade.

Nos primeiros três meses deste ano, houve 54% mais furtos na região da delegacia que atende o bairro de Campos Elíseos em comparação mesmo período de 2022. Em relação aos roubos, o aumento foi de 26,5%. Parte do bairro abriga ruas onde há cenas de uso de drogas.

Em nota, a secretaria de Segurança Pública afirmou que houve reforço policial na região e que o índice de roubos e furtos teve queda em abril, após 15 meses de aumento.

A situação se repete entre moradores das ruas Helvetia, Frederico Steidel e no entorno do Minhocão, primeiros endereços impactados pela dispersão da cracolândia, entre março e abril do ano passado. Mais recentemente, parte da Santa Ifigênia passou a ser referência da mazela social paulistana. A depender da hora do dia, há aglomerações de usuários nas ruas dos Gusmões, Andradas, Vitória e Conselheiro Nébias.

“NAS FESTAS DE FIM DE ANO, DURMO FORA OU PASSO SOZINHA”

O que mais mudou foi a falta de segurança. Não posso mais chegar tarde em casa nem sair muito cedo. Tenho que chegar no máximo até as 22h, quando saio à noite, e nem pensar em voltar de metrô, apesar de eu morar ao lado.

Nas festas de fim de ano, durmo fora ou passo sozinha; também não recebo mais ninguém em casa. Passei a carregar minha bolsa dentro de sacolas de supermercado para não chamar atenção. Se vou ao mercado, sempre uso camisetas velhas e surradas e, quando vejo um grupo de usuários na rua, desisto das compras e volto para casa.

Sou síndica e, quando um morador do condomínio passa mal à noite e pede ajuda, temos que andar dois quarteirões e pedir carro de aplicativo na avenida Rio Branco porque a rua aqui é marcada como de alto risco. Isso já aconteceu algumas vezes. Por causa dessa situação, eu passei a participar de manifestações organizadas por moradores e me tornei uma militante do centro. No começo, ia à Câmara Municipal e passava em todos os gabinetes de vereadores com o ofício na mão pedindo mais segurança.

“NÃO SAIO MAIS DE CASA DEPOIS DAS 18H SOZINHA, É UM RISCO MUITO ALTO”

Rosilene Delfino, 61, cozinheira, moradora da rua Apa

Moro aqui há 30 anos. Desde que a cracolândia veio para cá, não saio mais de casa depois das 18h sozinha, é um risco muito alto.

Trabalho em um bar a 13 minutos de distância da minha casa e, como faço o turno da noite, uso carro de aplicativo para ir e voltar todos os dias. Quando chego, peço ao motorista para me esperar entrar no prédio. Quando entro, olho para os lados com medo de ter alguém escondido nas escadas. Soube de vários prédios aqui perto que foram invadidos pelo telhado.

Não saio de casa com celular, e toda minha família sabe. Quando acontece alguma coisa no centro, todos ficam preocupados e só se tranquilizam quando eu chego em casa e retorno das ligações.

“O MOVIMENTO NO MEU RESTAURANTE CAIU 50% E AINDA NÃO VOLTOU AO NORMAL

Vanilson Pereira de Carvalho, 52, comerciante, dono de um restaurante na praça Princesa Isabel

O movimento no meu restaurante caiu 50% desde quando a cracolândia estava aqui na frente, em março do ano passado, e ainda não voltou ao normal totalmente. Para isso, preciso abrir mais cedo e fechar mais tarde, mas não tenho segurança.

Por isso, decidi escrever o texto ‘Mensagem de angústia, apelo e insatisfação’ e fixar na parede ao lado da cozinha para dar uma resposta aos meus clientes. Fiz esse banner porque o Estado não estava dando a resposta necessária para a situação. Minha clientela não podia ficar sem satisfação.

“SE TODA A POPULAÇÃO SE UNISSE E FOSSE ATRÁS, A CRACOLÂNDIA NÃO EXISTIRIA”

Paulo Branco, 60, produtor, morador da rua Helvétia

Moro no mesmo prédio na esquina da avenida São João com a rua Helvetia há 30 anos.

Em maio do ano passado, a cracolândia passou a ocupar a frente da minha casa. Eu tinha acabado de cadastrar meu apartamento em um aplicativo de hospedagem compartilhada e perdi todas as reservas. Tinha medo de sair e de entrar e decidi me juntar com outros moradores para encontrar uma solução; foi quando me tornei um militante pela defesa do centro da cidade.

Apesar de a cracolândia não estar mais na minha rua, eu continuo com esse trabalho. Vou a reuniões mensais com membros do conselho de segurança do bairro. O grupo de mensagens entre os vizinhos continua ativo e é por meio dele que emitimos alertas caso alguém perceba a tentativa de algum grupo de usuários em se fixar na nossa rua de novo. Se vejo algum lixo acumulado, também aciono a prefeitura. Os canais existem. Se toda população se unisse e fosse atrás, a cracolândia não existiria.

“TINHA UMA PLACA ESCRITO ‘COMO É BOM VOLTAR PARA CASA’, MAS EU TIREI PORQUE NÃO É BOM VOLTAR PARA CASA MAIS”

Marcelo Mendes, 50, ator, morador da rua Frederico Steidel

Tinha acabado de anunciar meu apartamento para vender quando a cracolândia se mudou para cá. Tinha três a quatro visitas por dia. Agora, um ano depois, anunciei pelo mesmo valor e não tive nenhum interessado. Meu imóvel deu uma bela desvalorizada.

Fora isso, não consigo mais sair à noite. Até me arrumo, mas na hora de passar pela porta, eu travo, me dá pânico. Piorou quando tive a casa invadida por dois usuários de drogas dois meses após a cracolândia ter saído daqui. Eu estava em casa e ouvi um barulho vindo da varanda. Saí e vi dois homens em cima do telhado. Gritei e tive a sorte que um carro da polícia estava passando bem na hora e os policiais conseguiram pegar um deles. Fomos para a delegacia, mas ele foi solto logo depois porque alegou ser pichador, apesar de não ter nenhuma lata de tinta.

Esse dia foi um divisor de águas e deixei de me sentir à vontade na minha casa. Eu sempre dormi pesado. Agora, passa um carro na rua e eu acordo. Não consigo mais dormir como antigamente. Minha vontade era de me mudar daqui. Nasci na Santa Casa, cresci no Copan [ambos na região central da cidade], todos meus amigos estão aqui no centro, mas não me sinto mais à vontade.

Se vejo alguém na porta do meu prédio quando chego de carro, peço para o motorista dar a volta e só desço quando não vejo mais ninguém. Sempre fui muito empenhado em cuidar da minha casa. Tinha uma placa escrito ‘Como é bom voltar para casa’, mas eu tirei porque não é bom voltar para casa mais.

“PASSEI A SAIR DE CASA COM UM PUNHAL COM MEDO DE SER ASSALTADA”

Riselda Maria Ferreira da Silva, 63, administradora predial, moradora da rua Guaianases

Moro aqui há 47 anos, foi onde criei meus filhos. Agora, eu estou doente e não durmo mais à noite nem de dia, é barulho o tempo todo. Comecei a tomar remédios controlados há quatro meses porque a minha pressão subiu e tinha dores pelo corpo. Estava quase entrando em depressão e, hoje, gasto R$ 1.800 por mês com medicação.

Tudo piorou quando eu estava na sacada e vi meu filho sendo assaltado ao ir para a faculdade. Colocaram uma arma automática no pescoço dele e eu quase voei para salvá-lo. Corri escada abaixo em desespero. Agora, ele só sai acompanhado de quatro ou cinco pessoas para levá-lo até o metrô.

Desde então, passei a sair de casa com um punhal, com medo de ser assaltada. Vai fazer um ano que não posso mais sair de casa à noite. Eu vejo senhoras de idade sendo atacadas na rua, gritando por socorro e tenho que descer para ajudar. Minha filha estava levando meus netos para a creche e foi assaltada. Levaram apenas o carrinho dos bebês.

Minha família vai se mudar para a Vila Prudente [zona leste de SP] e eu vou me dividir entre os dois endereços. Não quero vender meu apartamento, vou deixar fechado, apesar de meu médico ter me orientado a mudar de casa. Os usuários começam a gritar na rua e eu já começo a tremer dentro de casa.

A gente não tem condições de ir à feira. Se voltar com o carrinho cheio, eles te abordam e tomam tudo. Ando sem aliança, sem sapato caro. Aqui temos que andar quase como eles.

“MEU FILHO TEM VINDO MENOS AQUI EM CASA DEPOIS QUE FOI ASSALTADO, PREFIRO QUE ELE FIQUE NA CASA DA MÃE”

Jorge Gomes, 51, professor, morador da rua dos Gusmões

Não saio mais de casa à noite. Antes de a cracolândia vir parar na minha rua, visitava parentes, saía do trabalho e ia para o bar, hoje não faço mais isso. Quando tenho reunião até mais tarde, sei que vou ter que passar com a minha moto no meio do fluxo que toma a rua a partir das 18h todos os dias. Tenho que abaixar o capacete para sentir menos o cheiro da droga e do lixo acumulado. Todo fim de semana vou para Mogi das Cruzes [Grande SP] para descansar um pouco.

Olha a situação em que a gente chegou. Um bairro com um batalhão da Polícia Militar, o palácio da Polícia Civil e, no final da rua, fica a base da Guarda Civil Metropolitana. Era para ser o bairro mais seguro de São Paulo, mas não é.

Quando eu mudei para cá, em 2019, eu via a cracolândia da minha janela. Depois, passou a ocupar as ruas do Triunfo e Andradas. Dá um sentimento de raiva, não consigo mais ter pena dos usuários de drogas. Até onde eu sei o tráfico de drogas é proibido no país, e rola solto todo dia aqui na minha porta. Roubaram a tranca da lixeira do prédio e as câmeras de segurança. Colocamos de novo e mais alto dessa vez, mas usuários já intimaram alguns vizinhos para que fosse retirada de novo.

Meu filho tem vindo menos em casa depois que foi assaltado aqui perto, prefiro que ele fique na casa da mãe, que mora em Higienópolis. Antes, ele ficava mais comigo do que com a mãe. O quarto dele fica de frente para a rua onde é barulho a noite toda por causas da feira de drogas. Ele não consegue mais dormir lá. Usamos um grupo de mensagens para alertar os vizinhos que estão na rua e querem saber se o fluxo está em frente ao prédio para decidirem se vão voltar para casa ou não.

“DESDE O COMEÇO DO ANO PASSEI A ANDAR COM UM CANIVETE PARA ME DEFENDER”

Alex (nome fictício), motorista de aplicativo, 45, morador da rua Vitória

Moro aqui há 25 anos e nunca senti tanta ansiedade e aflição ao sair de casa. Desde o começo deste ano passei a andar com um canivete para me defender. Nunca tinha usado isso, estava guardado no fundo de uma gaveta. Tive que usar uma vez quando eu estava voltando para casa e vi dois homens virem para cima de mim, só mostrei o canivete e eles atravessaram a rua.

Antes de sair, olho pela janela para ver se há algum carro de polícia na rua. Se não tiver, não saio. Antes de a cracolândia vir para cá, eu saía para trabalhar cedo. Agora, tenho que fazer quatro viagens: levo a minha filha de carro para a escola, volto para casa para ir com a minha mulher até o trabalho dela -a uns dois quarteirões daqui. Tenho também que levar meu filho para a faculdade. Só depois consigo começar a trabalhar como motorista de aplicativo. Na volta para casa, se a rua estiver com muitos usuários, minha mulher entra em um supermercado e me espera buscá-la.

MARIANA ZYLBERKAN E DANILO VERPA / Folhapress

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