RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) –
Em uma temporada de férias no Brasil, o músico Francis Hime resolveu apresentar aos amigos que estavam no sítio de seu sogro em Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro, uma melodia que havia composto há pouco tempo.
Era 1972 e o músico vivia há três anos em Los Angeles com a mulher, a cantora e futura compositora Olivia Hime. Lá, fazia aulas particulares com os bambas de Hollywood, como Paul Glass, voltadas para autoria de trilhas sonoras.
Apresentou uma melodia sofisticada, que evolui “praticamente sem repetição melódica até seu desfecho”, num modelo de composição que aplica “técnicas eruditas na composição popular”, conforme analisa o jornalista André Simões em “Francis Hime – Ensaio e Entrevista”, lançado pela Editora 34. Uma justaposição característica da obra do compositor.
Ao escutá-la, Chico Buarque, com quem Hime vinha ensaiando um início de parceria desde 1966, deu início à criação de uma letra, que ficou incompleta. “Quando olhaste bem/ nos olhos meus…” O compositor Roberto Menescal disse a Hime que deixasse a melodia gravada antes de regressar a Los Angeles. “Eu fico no pé do Chico para terminar a letra.”
Era tarde da noite, Francis estava com um ovo estalado sobre a frigideira quando o telefone de seu apartamento em Los Angeles tocou naquele mesmo ano de 1972. Ligação internacional do Brasil. “Ei, Francis, aqui é o Chico, terminei a letra!” Estava dado o início da parceria.
Gravada naquele mesmo ano por Elis Regina, que havia acabado de se separar do compositor Ronaldo Bôscoli, “Atrás da Porta” tornou-se um sucesso imediato.
A parceria ajudaria Chico a amadurecer como letrista, como o mesmo reconhece. Nessa época, Hime popularizou-se como compositor.
Os dois atuaram juntos por 12 anos, até “Vai Passar”, um dos hinos da redemocratização -e uma das cinco músicas mais tocadas de 1984. Chegou-se a especular algum desentendimento, mas tratou-se apenas de um ciclo criativo que se esgotou. Chico é artista da Biscoito Fino, gravadora criada por Olívia Hime em 2001. Participou posteriormente de dois álbuns de Francis, tendo gravado a faixa “Laura” para seu penúltimo álbum, “Hoje”, de 2019.
Embora seja esta a parceria mais lembrada na trajetória do compositor em seus 60 anos de carreira, não faltaram companheiros para preencher os acordes de Hime. Ou para que ele preenchesse os versos com melodia. Foram sessenta ao todo, segundo a contagem de Simões.
Com Vinicius de Moraes, compôs na mesa de um bar num fim de tarde em Ipanema “Sem Mais Adeus”, a partir da letra deixada num guardanapo pelo poetinha, e “Saudade de Amar”.
Por meio de Vinicius, conheceu toda a turma da Bossa Nova. “Sem Mais Adeus” foi gravada em 1964 pela cantora Wanda Sá e em 1966 por Elizeth Cardoso, que gravou também “Saudade de Amar”. A primeira canção seria gravada também por Chico no “Álbum Musical”, de 1997, de Francis, quando este retoma sua trajetória de gravações musicais após mais de uma década como concertista.
Em 1965 fez seu primeiro show, com Dori Caymmi, no Bottles, uma das casas da Bossa Nova. Lá, conheceu um de seus compositores preferidos e uma de suas principais influências: o compositor Baden Powell, que chegou contando que havia feito uma nova composição. “Era ‘Canto de Ossanha'”, conta Francis.
Vinicius, por sua vez, chegou para ele em sua casa e contou: “Fiz hoje essa canção com o Tom.” Qual? “Eu Não Existo Sem Você.” O maestro é também uma das principais influências e paixões de Francis.
Tom, assim como Francis, teve também uma boa formação no piano e uma grande influência do maestro Heitor Villas-Lobos, borrando as fronteiras entre o erudito e o popular na música brasileira. Para Simões, Francis é uma espécie de sucessor do maestro.
“Ele parece dar um passo adiante na obra do Tom Jobim, no sentido de continuidade dessa tradição da orquestração da música de canção”, afirma. “A canção do Francis tem essa herança da composição formal, da harmonia europeia, da composição americana que se mistura com o samba, com as composições rítmicas mais populares e com a parte de concerto, é uma coisa mestiça e por isso mesmo muito rica e muito original.”
O primeiro disco veio em 1973, pela Odeon. Contava com “Atrás da Porta” e “Valsa Rancho”, também parceria com Chico Buarque. O álbum contou com pouca recepção do público, vendeu 3.000 cópias, mas teve grande recepção dos pares. Francis o considerou demasiado denso na época.
“Passaredo”, de 1977, Francis considera “mais balanceado”. E fez bastante sucesso em vendas, com 60 mil cópias. Francis lotou shows, vencendo uma barreira que ele mesmo tinha no início da carreira -a de não gostar de se apresentar. “Tinha que beber muito. Não gostava mesmo.”
É desse período sua parceria mais longeva, com a companheira Olivia Hime. A cantora, de início, foi reticente formar essa dupla musical, com receio de ser acusada de nepotismo, por causa do caráter da relação. Logo, porém, deixou a cisma.
“Ela tem essa coisa de saber identificar o que a melodia pede e saber completar com a letra dela. Ela traz um lado muito terno para as canções do Francis. Uma preocupação com a palavra justa, a melodia”, afirma Simões. “Em todos os discos do Francis, desde 1977, há duas ou três letras da Olivia. São mais de 30 canções ao todo.”
Com a criação, em 2001, da Biscoito Fino, Olivia trouxe também uma tranquilidade para a carreira do marido. Francis não precisa se preocupar com gravadoras. Mas sente falta do tempo das grandes casas do gênero e da relação que o público tinha com os álbuns, além de sentir falta da forma como se compunha. Ele ao piano, Vinicius à máquina de escrever.
Mas segue, claro, compondo. “É uma necessidade de se expressar. Se eu componho o dia já fica claro.” Só não lança outro álbum já para deixar o último, “Estuário das Canções”, de 2022, circular mais.
FRANCIS HIME: ENSAIO E ENTREVISTA
Preço R$ 84
Autoria André Simões
Editora Editora 34
DANILO THOMAZ / Folhapress