Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores

Foto: Reprodução

Rita Lee tinha carinha de anjo, mas cultivou a atitude rock n´ roll desde bem pequena. Nas festas de aniversário, estourava bexigas no ouvido dos adultos e roubava presentes que depois destruía. Na saída das missas, fingia ter deficiência física e pedia esmolas.

Eram os anos 1950, na tranquila Vila Mariana, em São Paulo. Nascida em 1947, ela passou a infância e a adolescência em um sobrado na rua Joaquim Távora, onde havia um porão que a deixava longe da vigília dos pais, com as paredes cobertas com fotos de artistas, quartel-general de sonhos e da sensação de liberdade.

A mãe, Romilda Padula, de origem italiana, era, como Rita dizia, mais católica que o papa. O pai, Charles Jones, dentista, descendente de americanos, tinha a ufologia como fé.

Certa vez, disse a Rita, quando viram luzes no céu: “Vou te contar: Papai Noel, Coelho da Páscoa, Deus e o Diabo, céu e inferno, essas bobagens não existem. Quem compra os presentes é a sua mãe. O que você viu não foi Peter Pan. Você viu um disco voador”. Entre o catolicismo e a ufologia, Rita escolheu o segundo.

Caçula, tinha duas irmãs, Mary e Virgínia Lee Jones. O sobrenome do meio foi dado em homenagem a Robert Lee, general da Guerra de Secessão. Mais duas mulheres, Luiza e Carolina, que ajudavam a cuidar das meninas e da casa e se agregaram à família, integravam o universo predominantemente feminino no qual Rita cresceu.

Ficou guardado entre elas um segredo trágico, que a cantora revelou na autobiografia: aos seis anos, Rita foi estuprada por um técnico que foi à sua casa consertar uma máquina de costura. A mãe teve de atender ao telefone e, quando voltou, encontrou Rita sangrando com uma chave de fenda na vagina.

As mulheres decidiram não contar a Charles, com medo de que ele matasse o homem e terminasse preso. A partir daí, conforme a cantora narrou sem autopiedade, passaram a tratá-la “como uma espécie de aleijadinha psicológica”.

Das travessuras na infância às drogas na vida adulta, tudo era relevado por elas, acreditava Rita, por ser consequência “daquilo, tadinha”.

E Rita meteu-se em muita confusão, a começar pelas do Liceu Pasteur, tradicional colégio francês da Vila Mariana no qual estudou. Seu histórico incluía fazer xixi nos sapatos deixados pelas alunas no vestiário durante as aulas de ginástica e uma tentativa de atear fogo ao teatro.

No universo escolar, resolveu, na adolescência, se meter com música, quando passou a se apresentar em bailinhos, festas juninas e afins.

Era preciso, para isso, enfrentar a repressão em casa, ou fugir dela. Com o “modelito show” por baixo da camisola, Rita pulava a janela do quarto e dava os primeiros passos da carreira. Acabou descoberta pelo pai quando passou mal em uma apresentação e foi levada ao hospital, onde foi operada de apendicite. Quando acordou, Charles, em vez de uma bronca, lhe deu um violão. É preferível à barulheira da bateria, disse.

Da Vila Mariana, passou a aprontar todas na Pompeia, bairro da zona oeste onde ficava a casa do irmãos Dias Batista, que ela conheceu em 1964 um festival escolar e com os quais formaria Os Mutantes.

Além de Arnaldo Baptista e Sérgio, integrantes do grupo, o mais velho, Cláudio César, montou uma oficina na garagem para a fabricação de instrumentos, em especial guitarras, e de amplificadores. Suas experimentações, tanto técnicas quanto estéticas, seriam uma das grandes sensações dos Mutantes.

Com a oficina e os ensaios, a casa virou point de roqueiros amadores e profissionais, além de demais simpatizantes de rock e de maconha.

Entre uma viagem musical e outra, Rita e os irmãos Batista saíam de carro pela cidade jogando restos de comida em pessoas em pontos de ônibus, atirando rojões em farmácias e em bancas de jornal —em meio a essa loucura toda e ao sucesso dos Mutantes, Rita até tentou cursar comunicação na Universidade de São Paulo, mas logo abandonou o curso.

O nível de piração foi para outra dimensão quando o LSD se tornou parte da banda, após uma turnê que fizeram em Paris, em 1970, e música virou sinônimo de alucinação. Rita, na volta da Europa para o Brasil, passou pela alfândega na cara-de-pau com um colar colorido no pescoço todo feito de ácido, como se fossem miçangas.

A comunidade que os Mutantes formaram em um terreno que compraram na Serra da Cantareira, a Mutantolândia, era de sexo, (muitas) drogas e rock’n’roll. Tinha aura hippie, mas não era só de paz e amor, e as brigas envolvendo o casal Rita e Arnaldo se misturavam às da banda.

Com o parceiro musical e primeiro namorado, ela tinha de guardar a sete chaves sentimentos “caretas”, como o ciúmes. Era preciso posar de moderna, devota da liberdade, e Arnaldo podia namorar outras até na sua frente.

O paradoxo rebelde/romântico foi ilustrado pelo casamento dos dois, em dezembro de 1971. Na cerimônia, Rita usou o vestido de noiva cenográfico que a atriz Leila Diniz lhe emprestara em 1968 para a apresentação dos Mutantes no 3º Festival Internacional da Canção, o FIC.

Convidados para o programa da Hebe, os pombinhos rasgaram a certidão de casamento no ar, chocando a apresentadora e o público. Gracinhas.

A separação real foi menos midiática e mais dramática, quando Arnaldo expulsou Rita dos Mutantes, em 1972. A cantora já vinha fazendo projetos solo, com escolhas mais pop do que as dos irmãos Batista, que se voltaram ao rock progressivo e trocaram o deboche, marca do grupo, por uma espécie de messianismo lisérgico –a mistura de música e drogas era tida como um caminho artístico, existencial e até político.

Em plena ditadura militar, Rita, conforme relatou em sua autobiografia, zombava de tudo elaborando o seguinte “projeto político”: “Jogar zilhões de LSD na caixa d’água da Vila Mariana”. Ainda que a participação dos Mutantes na tropicália fosse certamente política, a cantora não se considerava adepta da luta contra a ditadura e se definia como “hiponga comunista com um pé no imperialismo”: “Por que perder tempo lutando contra um filme de horror quando podia fazer da vida uma comédia?”.

Não tinha paciência com os jovens de esquerda que vaiavam nos festivais qualquer apresentação que não fosse de música de protesto: “Vou é tomar um ácido; fodam-se vocês, engajadinhos políticos”, pensava, como relatou no filme “Ovelha Negra”.

Das tantas confusões que protagonizou envolvendo drogas, algumas são até, digamos, folclóricas. Dentre elas está a do dia em que foi reclamar com André Midani, presidente da gravadora Philips, com quem, aliás, tinha um affair, da decisão de não gravar um disco dela produzido sob o efeito de ácido.

Na sala de espera, encontrou Tim Maia, enfurecido com uma foto dele escolhida para um disco. Entraram na sala do executivo, que não estava lá, e quebraram tudo, até discos de ouro emoldurados. Saíram acendendo um “baurets”, como o cantor chamava cigarros de maconha.

Já das passagens trágicas, Rita, na turnê do Rio de “Fruto Proibido”, primeiro CD com que fez sucesso sem os Mutantes, passou três dias cheirando cocaína no quarto do hotel, sem conseguir fazer shows, e ameaçou se atirar pela janela quando a droga acabou.

A vida seria repleta de loucuras assim, até que, em 2005, o nascimento da primeira neta fosse o estímulo para ela deixar as drogas. Perto dos 60, a cantora se mostrava disposta a desdizer o que uma tia vaticinara na sua infância, quando ela bebeu até cair no alambique da fazenda da família: “O defeito de Ritinha é não saber parar”.

LAURA MATTOS / Folhapress

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