RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em abril, o arqueólogo brasileiro Rennan Lemos, 32, chegou ao Sudão para mais um ano de trabalho pela Universidade Cambridge, onde leciona. Ele vislumbrava dias de pesquisa debruçado sobre um sarcófago.
Acabou, em vez disso, vivendo um inferno. No dia 15, o grupo paramilitar RSF (Forças de Apoio Rápido, na sigla em inglês) atacou as tropas do Exército sudanês, num conflito ainda sem solução -700 já morreram.
Neste depoimento, Lemos relata a generosidade dos desconhecidos que o salvaram. Em especial, de um senhor chamado Anuar. Vestindo uma túnica e mancando, ele ajudou o brasileiro a escapar do país.
O arqueólogo também teve o apoio da universidade e de autoridades brasileiras. Depois de muita negociação, o Itamaraty conseguiu colocá-lo em um comboio militar sueco com apoio dos holandeses. Lemos pousou em Londres em 28 de abril. Ele ainda tenta compreender aquelas duas semanas de terror.
Todo ano vou ao Sudão para escavar e pesquisar. Em abril, estava em Cartum estudando o sarcófago de um nobre núbio. Com uma restauradora italiana, comecei a medir a tumba e coletar amostras, mas não tivemos como terminar o trabalho. Em 14 de abril, quando estávamos no hotel, recebemos notícias da movimentação de tropas. Nada de novo ali. Só que no dia seguinte acordei ao som de bombas e tiros.
Telefonei para o departamento de segurança da Universidade Cambridge, que tentou me ajudar. Não podíamos sair do hotel. Ficamos lá, esperando passar, pensando que seria apenas por alguns dias.
Esperamos, esperamos. Até que os terroristas das RSF -é assim que os chamo- entraram no hotel com metralhadoras e começaram a roubar tudo. Abriram o cofre, roubaram meu dinheiro, meu celular.
Estavam estressadíssimos. Quando descobriram que eu era brasileiro, começaram a fazer graça, mostrar fotos de jogadores de futebol. Eu tinha me esquecido do nome do Roberto Carlos, porque detesto futebol. Achei que ia morrer por isso. Depois, me lembrei, e eles me deram um maço de cigarros de presente.
Foi a primeira das muitas vezes que entraram no hotel. Perdi a conta. Sempre armados, ameaçando. Tinha um homem de metralhadora e turbante, como nas cenas de filmes estereotipados sobre o Oriente Médio, com a munição cruzada no peito. E foi ele quem falou que a gente teria de sair do hotel.
Corremos para o quarto para pegar o essencial, achando que finalmente estavam nos salvando, que eles não eram tão ruins quanto parecia. Que nada. Na manhã seguinte, expulsaram a gente. Mandaram a gente para uma mesquita. Fomos andando, eram uns cinco minutos do hotel. Cruzamos o acampamento inteiro.
Só havia moradores de rua e pessoas doentes na mesquita, numa espécie de quintal. E cadáveres. Um monte de sangue. Uma pobreza total. A gente não podia ficar ali. Um idoso nos guiou em meio àquela zona de guerra. Tiroteio, bombardeio, explosão -e a gente andando na rua, pelo centro de Cartum, tentando achar um hotel. Uma ingenuidade total. É óbvio que não tinha nada. Era uma cidade fantasma.
Na calçada, encontramos um homem numa cadeira de plástico. Era um velho de túnica, mancando, chamado Anuar. Ele salvou minha vida. Imediatamente nos colocou dentro de uma espécie de albergue.
A maior parte do meu grupo ficou uma noite só. Eles saíram numa van no meio do tiroteio, e eu fiquei para trás, com duas filipinas que eram funcionárias do hotel. Ficamos ali duas noites, dormindo num terraço. Uma mosquitada danada. Mas o pior eram as balas que passavam perto. Não sei como não fui alvejado.
Tive que beber uma água meio verde. Parei de ser vegetariano depois de dez anos. Comi galinha e atum. Não dava para escolher. Quando Anuar soube que tinham me roubado tudo, me deu o celular dele. Liguei para a universidade, que organizou um time de segurança, tipo mercenários de filmes americanos.
Mas eles nunca conseguiram chegar até mim. Anuar viu que eu tinha ficado para trás e falou para irmos embora. Andamos até o terminal de ônibus, que estava entregue às baratas. Não tinha como caminhar sem chutar uma bala no chão. Aí apareceu um tuk-tuk lotado. O que eles estavam fazendo ali, não sei.
Anuar correu, mancando, para falar com o dono. Negociou, pagou. Sabia que eu não tinha como pagar. Falei: “Quando isso acabar, trago uma camiseta da seleção brasileira. Ele ficou todo feliz”.
Saímos de tuk-tuk no meio da guerra. Eu e as duas filipinas. Acabou o combustível. Ficamos numa praça tomando chá e comendo melancia. Uma coisa meio de normalidade. Então me despedi do Anuar. E nem sei se vamos nos rever um dia. Seguimos de tuk-tuk. Pegamos becos, ruas sem asfalto. Levamos um tempão, mais de uma hora. Chegamos a uma igreja. Tomei banho pela primeira vez em dez dias. Depois, a funcionária de Cambridge me ligou: “Prepare-se, vão te resgatar daqui a dez minutos”.
Era uma van da empresa que trabalhava para a seguradora da universidade. Fomos para uma base aérea militar do exército sudanês. Passamos por postos de controle, sempre tensos. Naquele ponto eu já estava bem. Fomos recolhendo mais gente. No caminho, vimos carros destruídos e corpos queimados.
Demorou muito. Era longe. Pegamos uma rota mais longa, pelo deserto. Até então eu nunca tinha visto tanques de guerra. Chegamos à base. Meu nome estava numa lista e consegui voar em um avião da Suécia. Depois, soube que o pessoal do Itamaraty tinha feito um trabalho imenso nos bastidores. Houve uma negociação de alto escalão para me resgatar. Tanto da embaixada brasileira quanto do pessoal da universidade. Cheguei ao Djibuti. Fui para Istambul e depois para Londres, onde pousei no dia 28.
Não sei por que estou vivo. Foi uma segunda chance. Se você pensar racionalmente, não tem como eu ter sobrevivido. A probabilidade era muito pequena. Mas não decidi contar essa história por isso, e sim pelas pessoas que me salvaram. Primeiro, o velho da mesquita que me levou para o albergue, que eu acho que era um morador de rua. Depois o Anuar, sentado na sua cadeira de plástico. Então, as meninas das Filipinas, a funcionária de Cambridge, a equipe da embaixada… Eu tive muita sorte.
DIOGO BERCITO / Folhapress