Mulheres sem útero recorrem a barrigas solidárias e adoção para serem mães

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos 14 anos, a designer de interiores Thaysa Godoy, 44, de Belo Horizonte, soube que não tinha útero quando a mãe a levou ao médico para investigar a ausência da menstruação.

“Foi um baque, chorei muito, mas o médico foi muito sábio ao me dizer: ‘Não estou falando que você não será mãe, apenas que você não vai poder gerar. Você ovula, quem sabe a sua mãe não gera para você?'”

Já a assistente social Márcia Marques, 47, de Goiânia, recebeu a notícia de forma brusca, aos 17 anos, durante um ultrassom. “O técnico me olhou e falou: ‘O médico já te disse que você não tem útero e que nunca vai poder ser mãe?'”

Márcia já tinha feito um primeiro ultrassom aos 15 anos, devido à falta de menstruação, mas, à época, o médico apenas comentou que ela tinha um útero infantil e receitou hormônios por dois anos como tratamento, o que a levou a acreditar que havia solução para o problema.

Assim como ocorreu com Thaysa e Márcia, o diagnóstico da síndrome de Rokitansky, caracterizada pela ausência de útero e/ou do canal vaginal afeta 1 em cada 5.000 mulheres e ainda causa muito sofrimento, dúvidas e desinformação.

Mas muitas delas se tornam mães por meio de adoção ou de barrigas solidárias, permitidas no Brasil quando não envolve negociação financeira. Nos últimos anos, o transplante de útero também se tornou uma alternativa possível, embora ainda pouco frequente.

No Brasil, há apenas um relato sobre esse tipo de transplante que tenha resultado em gravidez. Ocorreu em 2016, no Hospital das Clínicas de São Paulo. Uma mulher com a síndrome de Rokitansky recebeu o útero de uma doadora com morte cerebral, engravidou logo depois e teve o bebê em dezembro de 2017. Nos Estados Unidos, ao menos 33 mulheres receberam transplante de útero entre 2016 e 2021.

Thaysa fez fertilização in vitro (FIV) aos 30 anos e contou com a barriga da mãe, Dayse, para gerar a filha Isadora, hoje com 12 anos. Na época, ela estava casada havia quatro anos com Luiz Frederico.

Na FIV, mãe e filha fizeram tratamento hormonal. Thaysa, para produzir mais óvulos que depois foram fertilizados com os espermatozoides do marido; a mãe, para preparar o útero para a gestação. A gravidez foi confirmada na terceira tentativa. Dayse tinha 55 anos e já estava na menopausa.

“Quando eu peguei o Beta [HCG] positivo, foi muita emoção. Minha mãe teve que me acudir. Meu marido brincava dizendo que tinha engravidado a sogra.”

Cinco anos após o nascimento de Isadora, o casal decidiu ter um segundo filho, usando embriões que haviam ficado congelados. Mas dessa vez foi a cunhada de Thaysa, Ana Carolina, que emprestou a barriga para a gestação. Foram três tentativas frustradas.

Um novo tratamento foi feito, e a confirmação da gravidez veio na segunda tentativa. “Dessa vez foi totalmente diferente porque minha cunhada mora no interior de Minas. Ela só me mandava fotos dos ultrassons. Tive que desapegar muito do processo.”

Quarenta dias antes do parto, Thaysa começou a estimulação para produzir leite. Na primeira gravidez, ela não havia conseguido amamentar a filha. “Quando Ana Victória nasceu, agarrei nela feito uma leoa. Amamentei por seis meses e meio. Foi maravilhoso. Eu precisava viver isso.”

Márcia conta que quando teve o diagnóstico da ausência de útero estava namorando o atual marido, o instrutor de trânsito Weber Gomes da Gosta, havia um mês. “Minha autoestima ficou muito abalada. Passei dias me escondendo dele para não contar, só chorava.”

Mas quando soube, o namorado a apoiou de imediato. “Ele disse: ‘Se você precisasse de um pulmão, de um coração, seria mais complicado. Mas tem muitas crianças precisando de um pai e de uma mãe, vamos casar e adotar.'”

Com três anos de casados, o casal entrou na fila de adoção, e Vinícius chegou dois anos depois. Tinha cinco meses de idade. “Ele trouxe toda a realização que eu esperava como mãe, preencheu meu coração e é uma alegria muito grande nas nossas vidas.”

Com o filho, que hoje tem 21 anos, já crescido, Márcia decidiu voltar a estudar e, aos 40 anos, formou-se em serviço social. Tornou-se também uma das pioneiras do ativismo sobre a síndrome de Rokitansky no Brasil. Mantém uma página no Instagram para a troca de experiências e de conhecimentos com outras mulheres.

A dermatologista Claudia Melotti, 52, soube que não tinha útero aos 14 anos, mas só teve o diagnóstico da síndrome aos 20. “A sorte foi ter uma mãe maravilhosa que lá na década de 1980 me disse: ‘Cláudia, você vai ser mãe se quiser, quando você decidir, da forma que escolher.'”

Ela conta que a dúvida se seria ou não mãe persistiu até os 47 anos, quando decidiu que não teria filhos. “Exerço a maternagem como médica, como tia, como filha, como amiga, em todas as minhas relações. Sei da janela de oportunidades que uma mulher tem de ser mãe, mas eu também sei da beleza que é não ter filhos.”

Há três anos, ela e outras duas mulheres, a administradora Luciana Leite e a filha Isabella Leite Barros, uma jovem que também nasceu sem útero, decidiram criar o Instituto Roki para reunir informações adequadas sobre a síndrome de Rokitansky, as formas de tratamento e de acesso a ele.

“Temos relatos terríveis de médicos desrespeitosos com as meninas ou que até as orientaram inadequadamente. É uma minoria, claro, mas temos até o caso de um médico que orientou a menina a fazer a dilatação [do canal vaginal] com uma caneta Bic”, conta Cláudia.

Sem informação adequada, ela diz que uma garota dilatou, por engano, o canal da uretra (de onde sai a urina), localizado um pouco acima da abertura do canal vaginal. “Ela perdeu o esfíncter urinário e hoje usa fraldas. Muitas mulheres não têm a cultura do conhecimento do nosso corpo.”

Entre as frentes do Instituto Roki está a construção de uma rede de profissionais de saúde conhecedores da síndrome. “Por ser uma doença rara, muitas vezes fica ali numa aula isolada e, se o aluno [de medicina ou de outra área da saúde] não prestou atenção, nem sabe o que significa.”

Ela explica que além da ausência do útero e do canal vaginal, até 1 em cada 15 mil mulheres têm um outro tipo dessa síndrome, que pode causar também comprometimentos ósseo, cardíaco e renal. O instituto também oferece terapia e grupos de apoio em todo o país.

Segundo Cláudia, muitas meninas se preocupam mais com a impossibilidade de gestação do que com os problemas causados pelo encurtamento do canal vaginal, como dor e sangramento nas relações sexuais. O problema pode ser resolvido com dilatação ou mesmo cirurgias de reconstrução do canal vaginal.

“No nosso grupo, ouvimos relatos de meninas que estavam deprimidas, e que agora, com mais informações, se sentem melhor, estão conseguindo olhar para a maternidade e optar pela adoção, barriga solidária ou até se sentirem calmas e seguras para não ter filhos.”

CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress

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