Ex-atleta vítima de racismo durante a ditadura buscou superação nos estudos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na noite de 7 de julho de 1978, um grupo com cerca de 2.000 pessoas –a maioria negros– compareceu às escadarias do Theatro Municipal, no centro de São Paulo, para protestar contra a violência policial e a discriminação racial.

O objetivo era dar uma resposta à morte de um trabalhador negro, Robson Silveira da Luz, nas dependências do 44º Distrito Policial de Guaianases, dias antes, e à expulsão de quatro jovens negros da equipe de vôlei do Clube de Regatas Tietê, no mês de maio daquele ano.

O caso da expulsão dos jovens atletas ganhou grande repercussão a partir da denúncia feita à época pelo treinador da equipe, Wagner Braga. Ele contou aos atletas que havia sido procurado pela diretoria do clube com o pedido de dispensar os quatro jovens para evitar que eles frequentassem as dependências sociais, como as piscinas.

O episódio logo chegou aos principais jornais. No dia 19 de maio de 1978, por exemplo, a Folha publicou reportagem informando que o então governador Paulo Egídio Martins havia solicitado a abertura de um inquérito para apurar suposta prática de racismo por parte do clube, após determinação do Ministério da Justiça.

Já em 27 de julho, o jornal noticiava que o Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) concluíra que “não houve racismo no Tietê”. O delegado responsável pela investigação, Silvio Pereira Machado, aceitou a explicação da diretoria do clube, segundo a qual “os jovens negros foram apenas impedidos de treinar aos sábados e não impedidos de entrar nas dependências da agremiação”.

Passados 45 anos, um daqueles jovens vítimas de racismo, Paulo Sérgio Moreira Gomes, hoje um advogado tributarista de 59 anos, falou pela primeira vez sobre o trauma que o episódio trouxe para sua vida. “Acho que aquilo me causou um sentimento de inferioridade, um certo problema de autoestima”, disse à Folha.

Na época, Gomes morava no bairro do Limão, na zona norte, estudava na Escola Estadual Paulo Setúbal e frequentava o Clube Tietê como atleta amador. Por conta do episódio, diz ter buscado no estudo uma forma de superação. Quando chegou a hora do vestibular, com muito esforço seus pais –ele era cobrador de ônibus, e ela, cabeleireira– custearam os estudos num cursinho pré-vestibular.

“Estudo muito até hoje, porque acho que o meu diferencial é ter conhecimento técnico”, afirmou Gomes, que entrou no curso de engenharia do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e depois em direito na USP (Universidade de São Paulo). “Penso que tenho que ter um degrau, um algo a mais para apresentar para as pessoas”.

*

*Folha -* Você pode contar a história desde o começo? Quantos anos você tinha quando aconteceu o episódio de racismo?*

*Paulo Gomes – * Eu tinha acabado de fazer 14 anos.

*Folha -* Você era de uma família de classe média?

*Paulo Gomes – * Sim. Eu sou de classe média. Meus pais trabalhavam muito. Naquela época eu estudava em escola pública. Depois, no terceiro ano do colegial, passei a estudar numa escola particular para me preparar para o vestibular.

*Folha -* Como foi parar no Clube Tietê?

*Paulo Gomes – * Eu gostava muito de vôlei, aí surgiu a oportunidade de treinar no Clube Tietê. Eu não era sócio, fui convidado a jogar como federado. Aí começou uma rotina mais forte de treinos.

*Folha -* Quanto tempo demorou para acontecer o episódio de racismo?

*Paulo Gomes – *Cerca de três meses. A diretoria do clube não queria que a gente frequentasse as dependências sociais. O clube dava oportunidade aos atletas federados de usufruir das dependências sociais. Esse que foi o grande problema. Eu me lembro que eles [diretores] disseram ao nosso treinador: se os negros começarem a frequentar a piscina do clube, muitos sócios irão rasgar os seus títulos.

*Folha -* E como vocês ficaram sabendo?

*Paulo Gomes – * Nosso treinador chamou para uma conversa todos os atletas, não só os negros, e contou tudo. Disse que tinham pedido para que fossem dispensados os quatro atletas negros. O crédito é todo dele [treinador]. Só veio a público a história porque houve uma rebeldia dele e dos outros treinadores em relação ao que a diretoria queria.

Aí teve um detalhe, que mostra ainda mais o cinismo daquela diretoria. Eles disseram ao treinador que, no meu caso, que na cabeça deles era menos preto do que os outros três, eles até tolerariam minha presença. Mas os outros, não. Mas evidentemente que tivemos todos a postura de sair.

*Folha -* E como foi a repercussão?

*Paulo Gomes – *A história vazou para a imprensa. Eu era muito garoto. O impacto emocional mesmo sobre o que aconteceu veio depois. Naquele momento estava na adrenalina do fato, da denúncia. Caiu a ficha meses depois.

Eu me lembro de um fato que deixou meu pai muito incomodado: o Deops me chamou para depor. Foi aberto um inquérito e eu fui lá com meu pai. Ele ficou muito chateado porque, enquanto estávamos naqueles corredores, as pessoas perguntavam para ele: qual o caso do seu filho, é uso de droga, o que foi? Meu pai ficou muito incomodado de me ver naquele ambiente. Eu não tinha a menor ideia da gravidade que era, naquela época, frequentar aquele lugar. Embora em 1978 já tivesse passado o período pior da ditadura militar.

*Folha -* Emocionalmente, como aquele episódio de racismo repercutiu em você?

*Paulo Gomes – *Passado algum tempo, eu comecei a correlacionar situações. Até então, ser preto não fazia nenhuma diferença. Não me incomodava. Mas daí comecei a perceber que talvez eu não fosse aceito em algumas casas, em alguns lugares. Eu tinha um amigo que era muito claro, o pessoal o chamava de alemão. Eu era muito bem tratado naquela família, mas de repente eu me senti menor, por conta do ocorrido. Então acho que aquilo me causou um sentimento de inferioridade, um certo problema de autoestima.

*Folha -* Você acha que de alguma forma aquele episódio fez com que, no seu íntimo, você acreditasse que teria que ser melhor que os outros para poder se sobressair?

*Paulo Gomes – * Sim. Até hoje eu me vejo assim. Estudo muito porque acho que o meu diferencial é ter conhecimento técnico. Um degrau, um algo a mais para apresentar para as pessoas. E isso realmente pode ter aquela origem, uma vontade de me superar.

*Folha -* Depois daquele episódio do Clube Tietê, você foi vítima de discriminação racial mais alguma vez?

*Paulo Gomes – *Não mais. Acho que por isso, quando você tem outro nível educacional, fica menos sujeito a isso. O racismo recai mais sobre as pessoas mais humildes. O que é ainda mais grave.

*Folha – * E como você vê, ao longo desses 45 anos, a evolução ou involução do racismo no Brasil?

*Paulo Gomes – *Eu vejo que teve algum avanço, mas houve um retrocesso bastante grande nesse último governo. Eu vejo pessoas que falam abertamente sobre perseguição aos movimentos sociais, às minorias. Tem gente que não tem o menor pudor. Recentemente, do lado do meu trabalho uma moça bateu em um rapaz negro com uma corrente de cachorro. As pessoas fazem isso livremente. Falando absurdos. Tanto com relação aos negros, como também com relação à homofobia. Houve uma piora. As pessoas se sentem livres.

*Folha -* Mesmo constando na Constituição de 1988 o racismo como crime?

*Paulo Gomes – *Curiosamente, sim. O que aconteceu é que a maioria dessas situações é classificada como injúria racial, que tem uma pena muito menor. Mas aí veio o STF (Supremo Tribunal Federal) e classificou como crime de racismo. Agravou-se a tipificação penal, mas talvez a Justiça não tenha levado isso às últimas consequências até agora. A Justiça é muito lenta.

Paulo Sérgio Moreira Gomes, 59

Advogado tributarista e professor, cursou engenharia elétrica no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Quando jovem, integrou a equipe juvenil de vôlei do Clube de Regatas Tietê, em São Paulo

FERNANDO GRANATO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS