SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O escândalo envolvendo manipulação de resultados que tem abalado o futebol brasileiro não surpreende entidades e representantes do setor de apostas esportivas. Para eles, o atraso do Brasil para regulamentar a prática legalizada desde 2018 criou um terreno fértil para fraudes e corrupção, conforme tem mostrado a investigação em curso feita pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO).
Sancionada por Michel Temer, a lei 13.756 ficou quatro anos engavetada, sem regulamentação, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Um decreto com regras, com uma medida provisória complementar, com aprovações do setor, da Casa Civil e do Ministério da Economia, ficou meses no gabinete do ex-presidente, à espera de uma assinatura.
Em dezembro, Bolsonaro deixou expirar o prazo previsto em lei. Enquanto isso, o mercado expandiu sem normas, livre de impostos e com um futuro nebuloso.
“Estamos atrasados quatro anos no processo de regulamentação”, critica Magno José Santos de Sousa, presidente do IJL (Instituto Brasileiro Jogo Legal). “Em grande parte, o que está acontecendo deve-se ao fato de o governo anterior não ter regulamentado as apostas esportivas por tratar as apostas como uma questão de costumes e não como uma atividade econômica, a exemplo do que acontece no mundo.”
Com anúncios em TV, rádio, internet, estádio e, sobretudo, cada vez mais presente nas camisas dos times, as casas de apostas movimentaram R$ 4,5 bilhões em 2022, 44,4% a mais do que em 2021, de acordo com dados da H2 Gambling Capital, entidade independente que monitora o mercado.
Estima-se que mais de 600 empresas do ramo operem no país. A ampla maioria delas, segundo entidades que representam o setor, defende a regulamentação. No momento, elas operam sem uma representação local, em geral, com sedes em paraísos fiscais, sem recolher impostos para o Brasil.
A lei de 2018 determina que, para operar no país, uma casa de apostas esportivas precisa ter um CNPJ brasileiro para obter uma licença do Ministério da Economia. Sem isso, a casa seria punida pela Lei de Contravenção Penal.
A falta de regras claras, um órgão regulador e da formação de uma cultura consciente tanto para atletas, dirigentes e árbitros, como para apostadores, favoreceram o surgimento de esquemas de manipulações.
Na esteira das investigações do MP-GO, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avalia a criação de uma Medida Provisória que consiga suprir as lacunas existentes hoje, sobretudo para taxação do setor e punição para fraudes.
A MP estabelece, por exemplo, que jogadores e dirigentes seriam proibidos de apostar. Já o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estima que o país possa arrecadar cerca de R$ 6 bilhões anuais com tributos.
“Quanto mais demorarmos a regular esse mercado, mais problemas teremos de enfrentar”, afirma Magno José.
Ele acrescenta que “as plataformas de apostas são as maiores vítimas, pois são elas que pagam os prêmios”. Por enquanto, sites e clubes são vistos pelo MP-GO como vítimas dos esquemas, que já tornaram 15 atletas réus. Outros jogadores são citados nas investigações, mas não foram denunciados.
Na última quinta-feira (11), líderes do Senado decidiram criar uma nova comissão temática com objetivo de debruçar-se sobre o esquema de apostas no futebol brasileiro.
Não é a primeira vez que o esporte mais popular do país é abalado por um escândalo deste tipo. Em 2005, no caso mais famoso, 11 jogos do Campeonato Brasileiro apitados por Edílson Pereira de Carvalho foram anulados após a revelação do caso que ficou conhecido como “máfia do apito”.
“Infelizmente, o resultado em 2005 foi muito negativo na esfera criminal, uma vez que ninguém foi condenado. Toda atividade capaz de atrair grande quantidade de dinheiro deveria ser na mesma medida regulamentada e fiscalizada, tal qual é o setor financeiro”, critica a advogada Fabyola En Rodrigues, com atuação nas áreas penal empresarial e de compliance, do escritório Demarest.
Rafael Marcondes, diretor da Abradie (Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte), uma organização sem fins lucrativos que trata de questões que ameaçam a integridade do esporte, reconhece que o problema é antigo.
“A diferença agora é que foi instalada uma indústria que funciona no ambiente online, o que facilita a disseminação de boas e más práticas. E a demora do governo para regulamentar o setor contribuiu para isso (o atual escândalo).”
Em 2022, o relatório anual de integridade da Sportradar, empresa parceira da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), da Uefa e da Fifa, apontou o Brasil como líder do ranking entre os países com mais jogos suspeitos de manipulações, com 152 episódios, sendo 139 no futebol. Os 152 representam 12% do total global. A Rússia vem em segundo lugar, com 92.
Apesar de indícios de que houve fraudes em jogos das Séries A e B de 2022, a CBF descarta, por enquanto, paralisar as atuais edições.
O diretor da Abradie afirma que em mercados amadurecidos os índices de corrupção são baixos. “Um mercado referência, por exemplo, é a Inglaterra e não só pela fiscalização, mas também pela carga tributária adequada, que gera receita para o governo e, por outro lado, não onera o operador”, diz.
Relatório divulgado recentemente pela IBIA (sigla em inglês da Associação Internacional de Integridade de Apostas), que representa mais de 120 marcas de apostas globalmente, aponta a Inglaterra como a líder do ranking de “mercado ideal” para apostas.
O estudo avalia cinco pontos: regulamentação, tributação, produto, integridade e anúncios. Cada um dos pilares confere uma pontuação, que somadas podem chegar até 100 pontos. A Inglaterra acumulou 91.
Colômbia, 76 pontos, e Argentina, 61, são os únicos países da América do Sul na lista. Citado no estudo como um dos países que ainda carecem de regulamentação, o Brasil nem aparece no ranking.
LUCIANO TRINDADE / Folhapress