SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A ida ao Haiti em 2014 foi de supetão, e, sem melindre, o frei Aldir Crocoli, 75, da ordem dos capuchinhos, afirma até que não foi o que mais o deixou animado. Mas lá se vão nove anos no país caribenho, hoje cenário da mais grave crise humanitária das Américas.
Vivendo no município de Tabarre, nos arredores de Porto Príncipe, ele diz que ainda se sente minimamente afastado das gangues urbanas armadas que controlam boa parte da região, mesmo que a segurança não seja há muito tempo um sentimento próximo dos haitianos.
Ali o religioso que chegou ao Haiti sem falar francês e hoje já domina a língua e arrisca o criolo, o idioma predominante, ouviu relatos diversos sobre a Minustah, a operação de paz da ONU que teve o Brasil à frente por 13 anos. Ele reconhece o êxito temporário da operação militar.
Mas é justamente por observar o que se passou no país de 11,7 milhões de pessoas desde que a missão foi embora, em 2017, que o frei Aldir discorda que uma abordagem semelhante àquela possa, agora, ajudar o país que, sem representantes eleitos, assiste à falência do Estado.
“O Haiti sozinho não sai dessa situação. Precisa de ajuda. Mas se vier ajuda só no sentido militar, é melhor que não venha”, diz ele à Folha, em conversa por telefone. “O que o país precisa é de ajuda econômica, social, de planejamento. A coisa aqui está só degringolando.”
O frade é um dos poucos brasileiros que seguem no país. Autoridades calculam que há cerca de 70 brasileiros hoje no Haiti, a maioria adultos e, em especial, missionários religiosos como Crocoli, que é o único representante do Brasil entre os capuchinhos em missão no Haiti.
Estar em uma parte do território que ainda não sucumbiu ao controle dos grupos armados não o faz ignorar a situação. “É inacreditável o quanto estão matando, expulsando, desalojando, estuprando, roubando, extorquindo. A situação é caótica.”
Consequência direta da ausência de um Estado funcional no Haiti, relegado ao caos após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021 e o sucessivo controle da violência, o país vê se agravarem a insegurança, a fome, as doenças transmissíveis e a pobreza.
Os alertas vão sendo traduzidos em números que, isolados, talvez não deem a real dimensão da crise local. Juntos, porém, mostram que os problemas sociais se acumulam. No final do último ano, por exemplo, havia no país 170 mil pessoas deslocadas, que tiveram de deixar suas casas, devido à violência. Um ano antes, essa cifra era um décimo disso, mostram as cifras do Comitê Norueguês para Refugiados.
A ONU também informou que, somente em abril, mais de 600 civis morreram devido à violência urbana. Ainda segundo a organização, 115,6 mil menores de idade devem sofrer este ano de desnutrição. E uma nova epidemia de cólera, identificada no ano passado, já deixou ao menos 41 mil casos suspeitos no país.
É em meio a esse cenário que o frei Aldir tenta tirar do papel o sonho que desenvolveu no Haiti: um projeto de reciclagem de plástico que, uma vez operacional, poderia empregar ao menos 32 moradores locais.
O plano já está praticamente pronto para funcionar, mas falta uma peça-chave: energia. Já em 2020, estavam reunidas em um galpão as máquinas compradas com ajuda financeira de bispos italianos. Mas a instalação de uma rede de alta tensão tem sido impossibilitada pelo governo do país.
Pesa, ainda, a crise de combustível que, de uma forma ou de outra, afeta todos os haitianos. “Em 2020, pagávamos 179 gourdes (R$ 6) por galão de diesel. Agora, pagamos 670 gourdes (R$ 22,6). E o pior é que não se encontra combustível nos postos de gasolina, é preciso comprar no mercado ilegal, por fora”, diz.
É por isso que, agora, o frei Aldir busca patrocínio do Banco Mundial para uma nova ideia: instalar uma rede de energia solar para fazer funcionar o projeto de reciclagem, que define como possibilitador de cinco objetivos principais: limpar a cidade, proteger o meio ambiente, ser fonte de renda para moradores locais, ampliar a consciência ecológica e oferecer um produto alternativo para a cobertura das casas o material ali reciclado, afinal, daria origem a telhas.
“Vejo nisso um projeto que, aos poucos, pode contribuir para um câmbio sistêmico, uma mudança na vida dessas pessoas”, diz o frade, que busca alguma esperança em meio ao drama haitiano.
MAYARA PAIXÃO / Folhapress