CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Emoldurado por uma das amplas janelas do Palácio dos Festivais, sede de Cannes, Ruben Östlund parecia um personagem de seu último filme na manhã desta terça (16), dia da abertura da 76ª edição do evento.
Cristalinas, as águas da Riviera Francesa delineavam os cascos dos iates de luxo, tão inseparáveis da paisagem do festival. É num desses que se passa “Triângulo da Tristeza”, filme que no ano passado fez troça da burguesia que lota aquelas praias e que garantiu uma segunda Palma de Ouro para o sueco, pesando no convite para que ele assumisse a presidência do júri de agora.
Östlund faz parte do exclusivo clube de cineastas que arremataram a honraria duas vezes -na competição oficial deste ano há um dos outros nove, Ken Loach. Isso não deve pesar na escolha de seu júri, porém, apesar de ele ter brincado, no ano passado, que gostaria de ser o primeiro autor com três Palmas de Ouro no currículo.
“Ken Loach não tem chance! Estou brincando, ele certamente terá uma terceira Palma se tiver feito o melhor filme, e aí eu vou ter que mirar em quatro vitórias”, diz o antigo esquiador. “Eu venho dos esportes, de um terreno em que a competição te impulsiona a fazer melhor. É possível usar o lado positivo da competição. Todos esses diretores são competitivos, senão não estariam no nível do festival.”
Fazer melhor, na avaliação dele, é também saber se comunicar com o público. Cannes, historicamente, premia um cinema provocativo, que leva à discussão, continua. Mas muitos filmes europeus recentes se fecharam numa tradição autoral que os impossibilita de chegar às massas, o que não faz bem para a indústria.
“Os filmes que vemos aqui estão mudando o mundo e a forma como olhamos para ele, o que normalmente está do lado oposto do cinema comercial. Esse é o problema do cinema europeu. Nós nos acostumamos a pegar dinheiro do governo e de instituições e ficamos seguros financeiramente, sem a pressão de ter que vender ingressos”, afirma.
“Isso é ótimo, porque nos dá liberdade criativa. Mas o cinema americano é muito melhor em alcançar o público, então há pontos positivos nessa cultura. Precisamos entender e nos apropriar desse lado, porque o cinema europeu perdeu o contato com o espectador. Esse equilíbrio foi meu objetivo nos meus três últimos filmes”, diz sem falsa modéstia.
Seu júri, formado ainda por Julia Ducournau, Maryam Touzani, Denis Ménochet, Rungano Nyoni, Brie Larson, Paul Dano, Atiq Rahimi e Damián Szifrón, será orientado por essa mesma busca.
Östlundquer premiar filmes que tenham algo importante a dizer, embora deixe claro que não vai ceder a pressões em prol da diversidade, especialmente num ano em que Cannes bateu seu recorde de mulheres cineastas na competição principal.
Tampouco importam os burburinhos de bastidores -ele não pretende ler matérias ou críticas sobre os longas que irá avaliar, deixando sua atenção ser monopolizada pelo que estará na tela.
Um dos selecionados mais barulhentos, “Le Retour”, de Catherine Corsini, foi anunciado de última hora depois que surgiram boatos de que a cineasta havia sido verbalmente abusiva no set de filmagem e, para piorar, havia usado uma atriz menor de 16 anos em cenas de sexo. Östlund diz desconhecer o caso e pouco se importar com ele para o trabalho que começa agora.
Sobre a presença de Johnny Depp na seleção -com o filme de abertura “Jeanne du Barry”, que não concorre à Palma de Ouro- evocou as palavras de Thierry Frémaux, proferidas a jornalistas nesta segunda. Na ocasião, o diretor de Cannes disse que está interessado em Depp enquanto ator, não em sua vida pessoal ou no circo midiático de seu julgamento contra a ex-mulher, Amber Heard, que o acusou de violência doméstica.
“Muitas coisas boas vieram do movimento MeToo, claro, porque ele trouxe para o debate fatos que não se discutiam, mostrou uma estrutura que desconhecíamos”, diz Östlund sobre as acusações de abuso e machismo que cercaram este e outros casos de nomes de Hollywood nos tribunais.
“Mas é absurdo apontar o dedo para indivíduos e procurar por vilões. Foi a cultura que criou esse tipo de comportamento. Há um contexto por trás, não há como culpar uma única pessoa. Para isso, há todo um sistema legal, do qual eu não faço parte.”
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress