CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Afeito aos dramas familiares quase novelescos, Hirokazu Kore-eda criou para si uma marca própria. Seus filmes podem soar repetitivos, mas o japonês sempre mostra domínio sobre o tema e, por essa condução ímpar dos impasses que ocorrem no seio familiar, é hoje um dos mais celebrados nomes do circuito de festivais.
É curioso, portanto, que o filme que ele exibe agora na competição principal de Cannes tenha a unidade familiar não exatamente no cerne. Ela e suas questões estão lá, mas dividindo espaço com corredores escolares e o mundo de inocência que as duas crianças protagonistas imaginam para si.
Com trama mantida sob absoluto sigilo até a estreia e um título que pode enganar, “Monstro”, numa tradução literal, subverte as expectativas do público, descascando suas várias e complexas camadas aos poucos.
Só na metade do longa criamos o paralelo inevitável com “Close”, que rendeu o grande prêmio a Lukas Dhont no Festival de Cannes do ano passado. Ambos acompanham a amizade de dois garotos em idade escolar e ambos abordam bullying e saúde mental sem abrir mão do sentimentalismo.
Mas não se engane, os dois filmes são muito diferentes. Eles podem até se aproximar nos temas, mas divergem totalmente na narrativa -o choque cultural entre a sociedade japonesa e a belga talvez tenha sua parcela de culpa.
E, assim como “Close”, é difícil falar de “Monster” sem entregar a trama. Boa parte da graça está em juntar os fragmentos da história aos poucos, como num thriller. Por isso, Kore-eda passa por sua narrativa três vezes, sob pontos de vista de diferentes personagens.
Para quem ainda não viu, basta dizer que o filme começa acompanhando uma mãe preocupada com o comportamento do filho, que volta da escola com muitos machucados e poucas palavras. Ela vai atrás do professor do garoto, e este, enquanto isso, vai se fechando cada vez mais, em contraste com um colega de classe falante, alegre e sempre simpático.
Esperamos a todo instante o filme enveredar para o nunca anunciado, mas presumido gênero do horror sobrenatural. Há horror na trama, grave, embora mais discreto e menos literal. Parte dele vem de um sistema educacional falido, que assombra pais, alunos e professores, e de uma sociedade que, como um todo, falhou em absorver erros e imperfeições, diferenças e singularidades.
“Monster” ensaia até mesmo um comentário sobre a onda de perseguição a professores e a crise de ataques a escolas que contaminaram os Estados Unidos e parecem contaminar também o Brasil, escavando seus personagens em busca das razões para o comportamento agressivo e o isolamento social. A trama não chega a consumar essa ideia, mas fala de maneira dura sobre bullying e suas consequências.
Além das crianças, os adultos do filme também sofrem com a saúde mental abalada. Não falta drama na vida das figuras criadas por Kore-eda, mas ele aborda a violência com seu jeito sutil e delicado de narrar histórias. Tanto que o desfecho soa manipulador, mas entrega nada mais e nada menos do que se espera do cineasta japonês.
“Monster” tem cacife para dar a Kore-eda uma segunda Palma de Ouro, depois de conquistar uma pelo belíssimo “Assunto de Família” e um prêmio do júri pelo também sensível “Pais e Filhos” –e, no ano passado, levar o troféu ecumênico por “Broker”.
Mas isso parece improvável diante de um júri comandado por um cineasta tão avesso ao melodrama quanto Ruben Östlund. Onde um vê oportunidade para a sutileza e a emoção, o outro vê para o excesso e a acidez. É no mínimo incompatível.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress