SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – António de Oliveira Salazar, ditador de Portugal, havia morrido às 9h15 daquele 27 de junho de 1970. Estava com 81 anos e acumulava uma biografia de muita repressão e safadezas políticas.
O regime de extrema direita que ele chefiou duraria até 25 de abril de 1974, quando a chamada Revolução dos Cravos restaurou a democracia. Ela foi desencadeada por jovens oficiais do Exército.
Antes disso, no entanto, um curioso episódio ilustrou o quanto Salazar se tornaria desimportante. Um escultor chamado Silva Santos foi chamado para fazer a máscara mortuária do ditador. Mas eis que muitos anos depois, em 1998, o escultor também morreria, e em seu ateliê estavam as duas máscaras com o rosto do defunto. Ninguém veio reclamá-las e tampouco pagou por elas.
O esquecimento é narrado pelo espirituoso livro biográfico do jornalista italiano Marco Ferrari, lançado no Brasil pela editora Todavia. “A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes” é um relato exaustivo e sedutor, que percorre das possíveis aventuras amorosas do governante solteirão -sua primeira namorada tinha por nome Felismina–, às guerras para a anacrônica e sangrenta tentativa de preservar na África o antigo império colonial português.
Detalhe inicial importante: Salazar não foi um poltrão fardado como o ditador fascista espanhol Francisco Franco, com quem ele se encontrou apenas sete vezes ao longo dos 29 anos em que os dois dividiram o poder na Península Ibérica. O ditador português lecionava finanças públicas na Universidade de Coimbra e acreditava que outros governantes eram incultos. Não valia a pena perder tempo com eles.
Salazar desprezava a teatralidade do italiano Benito Mussolini e não gostava de banquetes e comícios, em contato direto com muita gente. Sempre foi um homem recluso, que tolerava a companhia de poucos amigos ou da governanta, Maria de Jesus, que nos tempos de Coimbra servia a ele e a seu eterno companheiro de conservadorismo, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira.
Salazar ascendeu ao poder no bojo de uma reação da direita portuguesa ao período de 17 anos de instabilidade que se seguiu à deposição da monarquia e do rei Manuel 2º. Entre 1910 e 1926 foram 45 governos. Em 1927 o Parlamentarismo sofreria quatro tentativas de golpe de Estado.
Salazar nunca foi presidente da República, cargo entregue durante seus 36 anos de ditadura a apenas três pessoas, o general António Carmona, o brigadeiro Craveiro Lopes e o almirante Américo Thomaz. Nesse longo período, o poder verdadeiro estava no palácio de São Bento, sede da chefia do governo.
O livro de Marco Ferrari explica como funcionava institucionalmente o Estado Novo, tradução política do salazarismo que se baseava num partido único e na Pide, horrorosa polícia política que tinha 20 mil agentes e 200 mil dedos-duros. Ao lado deles, as Forças Armadas, que, em razão das guerras como as de Angola e Moçambique, exigiam no início dos anos 1970 cerca de 220 mil homens. Entre 1960 e 1974, as colônias consumiam 26% do orçamento público, e desse montante 86% eram para os militares.
Portugal é um país pequeno, hoje com 10,3 milhões de habitantes, e os gastos com a guerra nas chamadas “províncias ultramarinas”, iniciada em 1961, já demonstravam o quanto a ditadura era economicamente inviável. Salazar sobrevivia com base na repressão, com a polícia e um sistema prisional desumano. Cafungando na sua nuca, o competente e clandestino Partido Comunista Português.
Eis que em agosto de 1968 Salazar sofre um AVC e permanece semanas internado no quarto 68 da Casa de Saúde da Cruz Vermelha, em Lisboa. Em setembro, impossibilitado de reassumir a chefia do governo, o ditador é substituído por Marcelo Caetano, um dos quadros do regime.
Inicia-se, então, o trecho mais hilariante da biografia. Ninguém conta a Salazar que ele não manda mais no país. E para manter a farsa, ministros e governadores simulam despachar diariamente com ele. A história vai a tal ponto que Augusto de Castro, diretor do Diário de Notícias, confecciona pessoalmente, de madrugada, um único exemplar do jornal para que Salazar lesse notícias de um Portugal fake, do qual ele ainda seria o governante.
O faz-de-conta chega a tal ponto que o ditador é entrevistado pelo diretor do matutino francês L’Aurore e se queixa que Marcelo Caetano –que em verdade já ocupa o lugar dele– é excessivamente apegado à Faculdade de Direito, onde já lecionara, e se recusa a assumir um ministério no governo.
No dia seguinte, o jornal traz como manchete, em Paris: “Salazar julga que ainda governa Portugal”. E continuaria a julgar até morrer no ano seguinte.
A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ANTÓNIO SALAZAR, O DITADOR QUE MORREU DUAS VEZES
Preço: R$ 74,90 (208 págs.)
Autoria: Marco Ferrari
Editora: Todavia
JOÃO BATISTA NATALI / Folhapress