Dizem que um suposto “marxismo cultural” estaria dominando as universidades públicas brasileiras, e, em especial, a USP. Há ainda todo um ódio contra professores universitários. Nós, professores, nos tornamos, parece, os grandes vilões da história. Daí, dizem ainda, faz-se necessária uma punição ou mesmo uma destruição generalizada do ensino superior público no Brasil, com a justificativa de se impor uma tal “escola sem partido”.
Será que esta onda anti-intelectual drástica, contrária às universidades, ao conhecimento, à pesquisa, e mesmo à liberdade do pensamento crítico, está sendo boa para o país?
Sobre a USP, é importante responder com fatos. A USP, como sempre, ocupa o primeiríssimo lugar na pesquisa brasileira. Basta se observar o rol das 100 universidades e institutos no Brasil com maior número de artigos científicos: https://ciencianarua.net/wp-content/uploads/2019/04/100-univ-inst-com-mais-artigos-2014-a-2018-BRASIL.pdf – tabela divulgada pelo diretor científico da FAPESP, Prof. Dr. Carlos Henrique de Brito Cruz (tendo como referência a base de dados Incitese). Ainda segundo Brito Cruz, “das 100 universidades brasileiras que mais publicaram artigos científicos no quinquênio 2014-2018, há 17 privadas. A melhor colocada é a PUC Paraná, em 37º lugar”. Portanto, mente descadaramente quem diz que “poucas universidades têm pesquisa, e dessas poucas, grande parte está na iniciativa privada”.
As universidades públicas desempenham papel estratégico e mesmo essencial na soberania nacional. A USP e as demais universidades públicas sempre se pautaram pela pluralidade das ideias e pela liberdade no ensino, na pesquisa e na extensão. O artigo 206/II da Constituição Federal garante a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Compreende-se ainda a liberdade como conditio sine qua non (condição essencial) das ciências, das artes e da filosofia, que, em sua grande parte, no Brasil, estão muito bem sediadas nas universidades públicas.
Por isso, temos que saber diferenciar: propaganda político-partidária não tem nada a ver com pensamento crítico. Mas a quem interessa a arbitrariedade desta confusão, que atende pelo nome de “escola sem partido”? Trata-se de uma ardilosa estratégia ideológica (que é a distorção do conhecimento a favor de um aparelhamento político, ou seja, a separação entre theoria e práxis, também conhecido como processo de alienação). Fala-se em “escola sem partido” para convencer os alienados, quando, na verdade, pretende-se a morte do pensamento crítico no Brasil.
Segundo Ernst Bloch, “intelectual é aquele que se recusa a assumir compromissos com os dominadores” e que “faz parte do pensamento, da ação e dos escritos de um intelectual a postura crítica contrária à sociedade repressiva”. Então será que já estamos enfrentando, com o engodo da “escola sem partido”, a concretude de uma ditadura, em que se procura aniquilar toda oposição? Já estamos sofrendo uma discriminação atentatória dos direitos e das liberdades fundamentais? É extremamente preocupante e inaceitável a perseguição que já estão sofrendo universidades federais de ponta, como a UNB de Brasília, a UFBA de Salvador e a UFF de Niterói.
Com o pretexto da “escola sem partido”, justifica-se a calúnia de que, nas universidades públicas, há uma inadequação político-partidária, bem como uma militância monolítica de esquerda. A realidade, contudo, é bem diferente. Há sempre professores, alunos e funcionários das mais diversas tendências políticas e religiosas, e, há também mesmo aqueles, em grande número, sem qualquer tendência política, nem religião, nas universidades públicas. As ideias, propostas, opiniões, críticas ou qualquer forma de expressão são manifestadas por meio da produção intelectual, garantidas pelas Constituição Federal, que sempre transcendem o ambiente da universidade. Mas, em sala de aula, nas universidades públicas, e, com certeza, em nenhuma unidade em específico, jamais ocorre a propaganda político-partidária, nem religiosa. Coloco as propagandas religiosa e político-partidária juntas porque incorrem num mesmo problema ético: ambas são incompatíveis ao ambiente universitário.
E a crítica drástica, já atrelada a cortes de verbas e demais ações truculentas e de repressão, tem girado em torno do tal “marxismo cultural”. Só que Karl Marx, o próprio, não tem nada a ver com esta confusão epistemológica (epistemologia é toda possibilidade filosófica que envolve os processos do conhecimento). O tal “marxismo cultural” não resiste a uma simples análise comparativa com o conteúdo da obra de Marx.
Marx viveu no século XIX e criticou o capitalismo em seus primórdios. Era um tipo de capitalismo diferente do atual. Aliás, as críticas de Marx influenciaram várias formas fecundas de capitalismo por meio de um estado social, como ocorrem hoje em alguns países, em especial da Europa, não obstante a privatização dos meios de produção. E Marx jamais tratou de questões culturais, nem de moral ou de costumes relacionados ao Zeitgeist (espírito de época) de agora – o que, em si, já seria o absurdo do anacronismo (quando se efetua o transporte forçado entre realidades históricas distintas).
Marx, enquanto polígrafo (quem escreve sobre muitos assuntos), foi filósofo, economista, teórico da sociedade e jornalista político. Ainda hoje, nas principais universidades do mundo, a obra de Marx faz parte dos estudos em história, sociologia, economia e ciências políticas. Trata-se de uma referência incontornável para a teoria do conhecimento nestas áreas, independente da condição do leitor, seja de direita ou de esquerda. Martin Heidegger, por exemplo, filósofo que jamais militou num partido de esquerda, considerou “a historiografia marxista superior a todas as outras”. Ou seja, segundo Heidegger, ninguém compreendeu a história tão bem como Marx. Também é monumental sua crítica da economia política: é impossível, ainda hoje, ser economista de verdade, sem conhecer Marx. A demonização de Marx, portanto, é fruto, ou da ignorância, ou dos interesses políticos os mais nefandos.
Marx foi um teórico (aquele que estuda e analisa a realidade e a descreve com embasamento científico). Jamais atuou como político, nem no executivo, nem no legislativo. Segundo Heiner Müller, “Marx só desenvolveu análises, não há uma posição marxista”. E esta questão é muito importante, porque se confundem ideologias apócrifas (textos não autênticos atribuídos erroneamente a um autor) com Marx. Vamos dar o mais claro entre os exemplos comparativos: o Stalinismo (regime político assassino que houve na União Soviética) está para Marx, tal como a Inquisição (sistema jurídico assassino da Igreja justificado pelo combate à heresia) está para Jesus Cristo. Mesmo elaborando várias questões ainda hoje importantes da historiografia, da economia, da sociologia e das ciências políticas, não existe, na teoria de Marx, uma cartilha de atuação político-cultural, nem algo próximo a isso. Stalinismo e outras arbitrariedades do século XX não passam de tentativas de refutar Marx.
Também não existe uma teoria da arte em Marx, nem sequer uma estética marxista. Quando jovem, Marx pretendeu ser poeta, sonho este que abandonou nos primeiros anos de exílio em Paris, quando esteve próximo a Heinrich Heine, que foi seu tutor. Talvez diante de Heine, o maior poeta alemão daquela geração, Marx acabou se contentando com a crítica da economia política e desistindo da poesia.
E não apenas Marx foi influenciado por Heine naqueles tempos. Também Castro Alves, nosso poeta baiano, deve muito de sua poética crítica a Heine, cuja poesia Das Sklavenschiff (Navio de Escravos) lhe serviu de inspiração para o seu próprio Navio Negreiro, entre outras influências evidentes. Tem muito da influência de Heine nos versos iniciais de Vozes d’África: “Deus, ó Deus! onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito… / Onde estás, Senhor Deus?…”
Sob influência de Heine, tal como Castro Alves, Marx também assimilou parte de sua postura crítica, compreendendo a religião como fenômeno ideológico por excelência. Heine chegou a antecipar conceitos que Marx eternizaria logo em seguida. A famosa frase “a religião é ópio do povo”, por exemplo, havia sido adiantada por Heine, quando publicou anteriormente, que “a religião é o ópio espiritual para uma humanidade sofredora”.
Mas vale lembrar que a crítica contrária às religiões remonta na verdade ao Iluminismo na França. Bem antes de Marx, Voltaire já dizia que “a religião surgiu quando o primeiro oportunista encontrou o primeiro ingênuo”. Trata-se de um debate já há muito superado nos países mais desenvolvidos da Europa – e Marx sequer é a referência principal. A solução para o problema é bem simples: há que se ter liberdade, para ter religião e também para não ter religião nenhuma. Não faz sentido atrelar este debate a Marx, nem muito menos hoje às políticas partidárias. Tudo isso se resolveria de maneira sensata se as igrejas não tivessem partido, tal como as universidades.
Temos outro raro caso, em Marx, de aproximação à arte popular. Por conta dos estudos recentes de Erich Stockmann, sabemos que Marx presenteou sua noiva, Jenny von Westphalen, com uma coleção de letras de canções populares das mais diversas procedências, copiada por ele. Da dedicatória manuscrita de Marx consta: “Canções de todos os dialetos alemães, espanhóis, gregos, letões, lapões, estonianos, albaneses etc. coletadas de diversas coleções etc. para a minha doce Jeninha de meu coração. K. H. Marx. Berlin 1839. Jamais te esqueci, Pensei em ti todo tempo, Tu moras em meu coração, coração, coração, Como a Rosa junto à sua haste” (com tradução minha, inédita em português, elaborada em conjunto com Dorothea Hofmann).
Ao colecionar canções populares, o que poderia ser entendido como algo próximo a um possível marxismo cultural de fato, Marx integra, na verdade, um contexto intelectual que remonta a Johann Gottfried Herder, poeta e filósofo, inventor do conceito de “canção popular” (Volkslied), que visava a valorização dos cantos dos iletrados, bem como das particularidades dos cantos populares das mais diversas comunidades. Trata-se do interesse por canções distantes da urbanidade dos maiores centros, conferindo-se originalidade às linguagens dos tempos primordiais (mantendo-se como metodologia a gramática e a ortografia vulgares).
Marx salienta não apenas a importância das singularidades regionais das canções populares em seus dialetos, mas considera também a pluralidade das procedências geográficas sem rejeição às possíveis fusões de horizontes entre elas, conferindo à pesquisa uma fecunda relação dialética entre o regional e o cosmopolita. Além de Marx, outros intelectuais, em geral poetas, músicos e naturalistas, também foram influenciados por Herder na valorização, coleção, invenção e publicação de cantos populares. Podemos citar, entre os mais famosos, Johann Wolfgang Goethe (com suas discussões, em Weimar, em torno das canções das Ilhas Faroé e da Sérvia, bem como dos cantos indígenas do Brasil, comparados com os cantos dos nativos australianos e tiroleses) e Ludwig van Beethoven (que, em Viena, arranjou centenas de canções escocesas, galesas e irlandesas). No Brasil, temos as publicações pioneiras de Domingos Caldas Barbosa (só com poemas elaborados pelo próprio poeta para as canções populares) e de von Martius (com poemas populares anônimos já postos em partitura musical provavelmente por Theodor Lachner, coletados pelo botânico em São Paulo, Minas Gerais e Bahia, cuja publicação teve incentivo direto do próprio Goethe).
Se lemos Marx diretamente nestas raras questões da arte (seja na literatura ou na música), torna-se claro que o tal “marxismo cultural”, tanto criticado, é antes uma construção precária e de segunda ordem, dissolvendo a heterogeneidade do pensamento crítico original na univocidade de um discurso ideológico tardio, distorcido e oportunista.
O absurdo ainda maior é que se procura atrelar o tal “marxismo cultural” ao PT. Ora, as políticas do PT sempre priorizaram a indústria da cultura (sistema ideológico do século XX, inexistente no século XIX de Marx), numa concepção oposta e totalmente diversa da crítica contrária à indústria da cultura, promovida pelos maiores intelectuais marxistas do século XX, da Escola de Frankfurt. Se é que temos um “marxismo de crítica à cultura” de fato no século XX, quem responde por ele, numa posição protagonista, é sem dúvida a Escola de Frankfurt, cujos autores estão excluídos do debate nonsense (sem sentido) daqui. E continuamos assim, se é que em meio a toda esta tragédia caiba ainda um pouco de humor: toda vez que se diz aqui “marxismo cultural”, Marx se revira protestando em seu túmulo lá em Londres.
Não obstante terem publicado o Manifesto Comunista, Marx e Friedrich Engels perceberam a inviabilidade de uma atuação político-partidária deles: “Como poderíamos nos enquadrar num partido (fugimos de cargos oficiais como da peste), o que tem a ver conosco, já que desdenhamos a popularidade, como nós mesmos seríamos dementes se fôssemos populares, [ainda mais] utilizando um partido, quer dizer: um bando de burros que nos considera como o que há de melhor, porque nos toma por seus iguais” (aqui com minha tradução, também inédita em português). Observa-se, portanto, que, desde sempre, Marx e Engels rejeitaram veementemente a associação de sua filosofia crítica a partidos políticos ou ações culturais. Ou seja, eles jamais desejaram que a obra teórica deles fosse associada à militância de partidos, mesmo os comunistas do século XIX, já definidos por sua burrice, como vimos acima na citação inédita (trata-se de cartas manuscritas localizadas recentemente e não editadas anteriormente).
E todo debate anticomunista, desde 1989, após o colapso da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, tornou-se absolutamente anacrônico, com o fim da Guerra Fria que foi vencida pelo capitalismo. Lembremo-nos que Cuba é uma exceção em processo gradual de retorno ao capitalismo e que a Coréia do Norte não passa de uma terrível aberração. Mesmo a China já há muito também voltou a ser um país capitalista.
Portanto, tanto o ódio às universidades, como estas distorções da “escola sem partido” e do tal “marxismo cultural” devem ser revistas pela parte mais sensata da população brasileira, reconhecendo a evidente obscuridade que envolve todos estes debates. O resultado deles é sempre uma sucessão de equívocos, mal-entendidos e confusões, enfim, um conjunto de precariedades epistemológicas, mas que, movidos pela arbitrariedade do poder, geram uma série de ações truculentas e prejudiciais ao país, ferindo perigosamente a democracia e a Constituição Federal.