Drogas K: consumo aumenta periferia de SP

Droga K9 deixa em alerta órgãos de segurança no país |Foto: Divulgação/ Polícia Civil SP

No bairro Jardim São Savério, no extremo sul da cidade de São Paulo, o ponto final de uma linha de ônibus se tornou local de encontro para jovens consumirem a droga K9. A estrutura depredada serve também de cenário para os vídeos postados em perfis nas redes sociais criados para compartilhar imagens dos adolescentes sob o efeito da substância, se contorcendo ou simplesmente apagados na calçada.

Foi por meio de um desses vídeos que a dona de casa Estela, 31, descobriu que o filho de 17 anos estava viciado em K9, que surgiu nos presídios e se alastrou, principalmente, entre adolescentes. “Ele estava todo torto, mole”, lembra ela, cujo sobrenome não é divulgado nesta reportagem para preservar a identidade do jovem. “Antes, já desconfiava porque ele estava roubando coisas de dentro de casa, como sacos de arroz e feijão. Os amigos falaram que era para comprar K2”, diz, citando a versão em que o canabinoide sintético é dissolvido em acetona ou etanol e borrifado em ervas para imitar o cigarro de maconha.

Desde outubro do ano passado, a rede municipal de saúde tem registrado aumento de casos de intoxicação pela nova droga. Na falta de um protocolo de análises clínicas no município que permita descobrir a substância ingerida, as notificações são tratadas como suspeitas por se basearem na avaliação dos sintomas.

O Centro de Controle de Intoxicações registrou 216 casos suspeitos desde o início deste ano, mais do que o dobro do ano passado, quando foram contabilizados 98 casos, tanto na rede pública como na particular.

A maior parte se concentra em bairros da periferia, principalmente nas regiões norte e leste da cidade, de acordo com Wagner Laguna, psicólogo e assessor técnico da Divisão de Saúde Mental da Coordenadoria de Atenção Básica. “Ainda não temos muita base em termos de dados para apontar um aumento, mas temos o crescimento das notificações”, diz.

Diante dessa incerteza, a secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, se reuniu na semana passada com representantes da secretaria municipal de saúde para estabelecer um termo de parceria para notificar e reunir dados sobre o consumo da droga.

Na prática, as amostras de sangue de pacientes com sintomas de intoxicação por K9 serão enviadas a um centro de toxicologia para investigar os tipos de substâncias que estão circulando na cidade. “Geralmente, são usuários que consomem o K9 em interação com outras substâncias”, diz a secretária. “Essa droga existe desde 2014, o que é novo é o aumento muito repentino de casos. É muito importante monitorar São Paulo por representar uma emergência nacional”, ressalta.

Segundo Machado, as conclusões sobre as análises serão publicadas em boletins periódicos e podem servir de subsídio para atualizar a resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que lista as substâncias proibidas e controladas no país. A mais recente é de 2010, que contém um tipo de canabinoide sintético na lista de substâncias psicotrópicas.

Apesar de os dados epidemiológicos apontarem a predominância da droga em bairros periféricos, o técnico da secretaria da Saúde ressalta que o uso é disseminado entre jovens de todas as classes sociais.

Desde 2010 o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência monitora 224 tipos de canabinoides sintéticos registrados. O Ciatox (Centro de Informação e Assistência Toxicológica), ligado à Unicamp, tem capacidade para monitorar 42 canabinoides sintéticos e, por meio de convênio com o governo federal, vai analisar as amostras de usuários na parceria com a prefeitura.

“Só em 2023 o Ciatox já atendeu oito casos de pacientes com intoxicações por canabinoides sintéticos. Parece um número pequeno, mas é mais do que atendemos de 2016 a 2022. Temos, praticamente, um caso por semana”, diz o coordenador-executivo José Luiz Costa.

Por ser ainda uma droga criada a partir de moléculas sintéticas sem um padrão de quantidade, há poucos estudos conclusivos sobre os efeitos do seu consumo no organismo a longo prazo, segundo o biomédico Eric Barioni. “O efeito psicoativo é mais intenso e, por causar tolerância, o usuário precisa de doses cada vez mais altas para ter o mesmo efeito o que aumenta o risco de dependência”, diz.

A manicure Katia, 32, moradora do Jardim São Savério, passou a fumar K2 há cerca de dois anos quando a substância lhe foi apresentada como uma “maconha mais forte”. “Um trago e eu já viciei. Vendia as coisas de casa para comprar a droga. Se eu ficasse sem fumar, me dava abstinência e eu me tremia toda, acordava vomitando.”

Ela conta que deixou o vício após ser hospitalizada com paralisia facial. “Um dia me olhei no espelho e estava toda deformada. A médica disse que foi por causa da K2”, diz. “Parei também porque tinha medo do conselho tutelar me tirar minhas filhas.”

Usuário de cocaína, Henrique Souza, 39, conta que começou a usar a droga quando viu outros amigos fumando. “Comecei a usar antes de dormir e, quando eu vi, já estava fumando um atrás do outro, sem controle. Vicia mais do que cocaína”, diz.

Há cerca de um mês, o autônomo Carlos Alberto, 55, foi chamado às pressas quando seu filho de 12 anos teve um mal súbito após fumar K2 em uma esquina perto de sua casa no Jardim São Savério. “Ele ficou entubado com insuficiência respiratória, quase morreu”, diz.

O pai relata que o filho começou a fumar maconha aos 10, quando a família morava na Baixada Fluminense. “Eu estava sempre trabalhando e fora de casa, e a mãe deles saiu de casa e eu não sei onde ela está”, diz. O filho teve alta e foi encaminhado para um abrigo da prefeitura.

Na periferia, os pinos de ervas com K9 são vendidos em diferentes quantidade e os preços variam de R$ 2,50 a R$ 10. No ano passado, o Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos) apreendeu 11 quilos de K9. Neste ano, foram 18 quilos, segundo o delegado Carlos Castiglioni.

As apreensões ocorrem sempre junto com outras drogas, como lança-perfume, cocaína, ecstasy, crack e maconha, e em formatos variados, como borrifada em papéis e em ervas. “Esse ano, as apreensões foram mais frequentes em ‘casas-bomba’, apelido das centrais de abastecimentos das biqueiras”, diz. Cidades da região metropolitana de São Paulo, como Guarulhos e Franco da Rocha, além da favela de Paraisópolis, na zona sul, estão entre os endereços das apreensões.

Apesar de reunir tantos casos de dependência de K9, o Jardim São Savério fica a 6 quilômetros de um Caps (Centro de Atenção Psicossocial). “Fico aqui como um paizão dos jovens, que passam mal na rua e veem aqui me chamar”, diz o líder comunitário Anderson de Jesus, 43, que mora em frente ao ponto de ônibus usado para reunir adolescentes que usam a droga. “Eu vi essa molecada toda crescer aqui e não temos nenhum tipo de ajuda.”

ENTENDA AS DROGAS K

O que são?

É a forma popular como ficaram conhecidos os canabinoides sintéticos, criados para estudos farmacológicos que buscavam entender o sistema endocanabinoide e o próprio mecanismo de ação no cérebro do THC, princípio psicoativo da maconha. Pesquisadores e a indústria farmacêutica buscam análogos sintéticos ao THC desde 1960, principalmente, para desenvolver novos analgésicos.

Do que são feitas?

No formato mais consumido, é dissolvido em acetona ou etanol é borrifado em ervas para imitar o aspecto de folhas secas de maconha. Além disso, várias outras substâncias, como conservantes e drogas ansiolíticas e estimulantes, podem estar presentes.

Por que não se trata de ‘maconha sintética’?

A maconha é derivada da planta Cannabis sativa que produz os fitocanabinoides, entre eles, o THC e o canabidiol (CBD). As “drogas K” são produzidas a partir de canabinoides sintéticos e atuam nos mesmos receptores que a substância psicoativa THC.

Quais os efeitos?

Usuários relatam estado de torpor imediato e muitos dizem “apagar” após o consumo. Os efeitos já observados no organismo são: psicose, paranoia, alucinação, alteração de humor com irritabilidade, agressividade, desorientação, ansiedade, ataques de pânico, tremores, espasmos musculares e convulsão, transpiração intensa, queimação nos olhos, perda de percepção de tempo, sedação, dor no peito, taquicardia, bradicardia, hipertensão, hiperventilação, dormência e formigamento, náuseas, vômitos, ressecamento da boca, entre outros. Muitos dos sintomas da intoxicação aguda tendem a desaparecer duas horas após o consumo da droga e pouco se sabe ainda sobre os sintomas mais persistentes.

A droga causa dependência?

Sim, as drogas K podem causar tolerância, sendo necessárias doses cada vez mais elevadas para obter o efeito psicoativo, e, com isso, há aumento de chances de desenvolvimento de dependência.

Fontes: biomédico Eric Barioni e Sociedade Brasileira de Toxicologia

MARIANA ZYLBERKAN / Folhapress

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