Karim Aïnouz ataca reinado de Henrique 8º com filme britânico em Cannes

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – De todos os temas que Karim Aïnouz poderia escolher para sua estreia num filme estrangeiro, o reinado de Henrique 8º parece ser um dos mais distantes de sua realidade, enquanto cearense, e de seu cinema, marcado pela sensibilidade e por relações de afeto construídas com delicadeza.

Um monarca que decapitou duas esposas e isolou outras duas está distante dos personagens que habitam sua filmografia. Em “Firebrand”, no entanto, Henrique 8º é um mero acessório, já que o interesse de Aïnouz está na sexta e última de suas mulheres, Catherine Parr.

Exibido na competição oficial do Festival de Cannes, o longa-metragem britânico traz Alicia Vikander no papel de uma rainha inteligente, com ideias progressistas e que aprende aos poucos a navegar pelas mudanças bruscas de humor do rei, papel de Jude Law, e os interesses escusos que o rondam.

Nem sempre ela é vista como aliada, principalmente pela ala religiosa da corte, que quer pôr um monopólio na palavra de Deus e proibir que textos religiosos sejam publicados em inglês. Catherine discorda, bem como uma amiga de infância que vem pregando contra o clero e a monarquia Inglaterra afora.

É a partir deste conflito que a relação entre rei e rainha desabrocha. Catherine tem a seu favor o que Henrique 8º chama de amor por ela, assim como o afeto dos filhos do monarca, Mary, Elizabeth e Edward, criados por ela na ausência de suas genitoras.

Além disso, há a saúde já debilitada do rei, o que não o impede de tratá-la de forma abusiva, física ou psicologicamente. Ela nunca tem certeza de quão perto sua cabeça está da guilhotina.

“Firebrand”, palavra que no inglês descreve um pedaço de madeira em chamas ou uma pessoa apaixonada por uma causa, é curiosamente fruto da falta de políticas públicas para o cinema durante o governo Bolsonaro, disse Aïnouz na véspera da estreia do filme em Cannes, que ocorreu neste domingo (21).

Depois de vencer o prêmio da mostra Um Certo Olhar de Cannes em 2019 com “A Vida Invisível”, o cineasta se viu sem trabalho no Brasil. Não faltaram, porém, convites estrangeiros para que ele fizesse sua estreia em língua inglesa.

“Deu um medinho, mas passou”, diz, depois de anos cultivando a vontade de explorar a indústria cinematográfica estrangeira. Não ser inglês fez com que ele estudasse a fundo a história do período e desse uma visão crítica para uma trama narrada à exaustão, dos livros de história à série “The Tudors”.

Aos poucos, o roteiro foi assimilando características de seu cinema, com mudanças que ele foi convencendo a equipe de produção britânica a aceitar. Em especial, para negar um tom de veneração àquele microcosmo anacrônico da realeza britânica.

“Houve uma coroação agora há pouco, mas para mim o rei Charles é um cara igual a qualquer outro. Essa falta de reverência me ajudou muito, porque fez com que eu me aproximasse dos personagens. Eles deixaram de ser só um quadro bonito”, afirma.

Nem por isso “Firebrand” deixa de servir um banquete suntuoso aos olhos do espectador. Vestidos foram cautelosamente costurados à mão para as filmagens, sob a exigência de que os tecidos deveriam ser os mesmos da época. As gravações, por sua vez, ocorreram no castelo de Haddon Hall, que ficou dois séculos fechado e, por isso, preservava a aparência necessária.

“Você pode me acusar de liberdade poética, mas jamais de falta de verossimilhança”, diz Aïnouz, que põe Catherine para escovar os dentes na cena inicial, tirando a personagem do trono e a trazendo para perto do espectador. Assim, o público é apresentado a uma mulher menos presa ao passado, que curiosamente evoca as protagonistas de “A Vida Invisível”.

Ambos os filmes falam da trajetória de dor de mulheres que sofrem nas mãos do patriarcado, mas encontram uma maneira de não se render à sua crueldade. É como se tivesse regravado aquele filme, afirma o cineasta.

Aqui também, ele mostra as tentativas de Catherine de se libertar, de impor uma visão feminina e feminista àquele universo masculino. É uma tarefa árdua, pontuada pela instabilidade do clima inglês, que muda dos tímidos raios de sol para as nuvens cinzentas ou o vento intenso.

“O que tem de filme sobre esse Henrique matando mulher é um negócio surreal. Um espetáculo do feminicídio. As crianças cantam músicas sobre ele decapitar mulheres na Inglaterra, mas ele era um serial killer. Então eu precisava falar da dor, para dar uma dimensão histórica do que foi conquistado, mas ao mesmo tempo reimaginar o real e sair do óbvio”, diz.

“Não dava para passar duas horas vendo Henrique maltratando Catherine, porque são cinco séculos dessa violência, que foi naturalizada. Estou atacando o patriarcado, Henrique, Trump, Bolsonaro, Putin, Erdogan. Parou. Chega de homem fazendo esse tipo de coisa.”

Sem abandonar a cartilha dos filmes de época, “Firebrand” traz frescor ao gênero, num Festival de Cannes recheado de obras que escondem sob seu verniz temas latentes para os tempos atuais, por mais difícil que seja encontrá-los.

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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