CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A primeira coisa a cair em “Anatomie d’une Chute”, ou anatomia de uma queda, é uma bolinha. Ela quica nos degraus de uma escada, perseguida por um lindo border collie de olhos azuis. O brinquedo cai na sala onde a escritora Sandra, vivida por Sandra Hüller, é entrevistada por uma estudante.
Logo de cara, sabemos tratar-se de uma autora de autoficção, gênero que contagia a literatura contemporânea das últimas décadas.
Uma moda que merece sua defesa, ao menos de acordo com o Nobel dado a Annie Ernaux e com os filmes de Justine Triet, a diretora, fascinada pelas fronteiras da realidade no roteiro ao lado de Artur Harai, também autor do seu longa anterior, “Sybil”, de 2019.
Mal começa a conversa, o marido de Sandra, Samuel, escondido no sótão, põe 50 Cent no último volume e acaba com o clima na casa. A estudante prefere remarcar a conversa e vai embora, enquanto o filho de 11 anos do casal, Daniel, papel de Milo Machado Graner, sai para passear com o cão.
Quando o menino, que tem uma deficiência visual, retorna, já é tarde. Na sua ausência, outra coisa caiu: seu pai. Ele corre para chamar a mãe, mas a cabeça do homem já está aberta em frente ao chalé numa montanha francesa, manchando a neve de vermelho.
Crime, acidente, suicídio, ou, pior, um evento premeditado para alimentar mais um best-seller autoficcional? Triet, ao contrário do tribunal das redes sociais, não dá respostas de imediato. Não julga sua protagonista nem dá pistas desnecessárias.
Em vez de dar vazão a uma terceira queda, o filme prefere segurar o fôlego do espectador por duas horas e meia, mantendo a dúvida fundamental em suspensão –como deveriam ser todas as tramas judiciais.
O tempo é bem aproveitado com um passo a passo dessa jornada. Após a morte, Sandra vai ter longas conversas com seu advogado, papel de Swann Arlaud, um velho conhecido, ainda incerta sobre se será considerada suspeita no caso. Em seguida, há as investigações da polícia, os depoimentos dela e do filho, e só então o filme mergulha no gênero do tribunal.
Boa parte da força do cinema de Triet brota da palavra bem dita (notável dentro do prolixo cinema francês) e aqui ela é fundamental para hipnotizar o espectador.
Ardilosa, Triet brinca com aspectos particulares de seus personagens, tanto como europeus como quanto membros de uma elite intelectual sem deixar o mistério esfriar.
Enquanto novas provas e detalhes dos depoimentos vão aparecendo, entendemos que Sandra é alemã e Samuel francês, e eles encontram a conciliação falando em inglês (o que ele detesta), enquanto a mulher reconhece estar duplamente distante da sua pátria, sem se expressar em alemão e morando num país em que as pessoas fecham a cara “quando ela não sorri”.
A questão do idioma, mesmo sutil, é fundamental para dar a carga emocional dos últimos minutos do longa. Sendo um filme de “anatomia”, vale apenas adiantar que será pela boca do jovem Daniel que a queda, paradoxalmente, atinge seu cume. As crianças, aliás, sempre têm um papel especial nos filmes da diretora.
Samuel, que existe por boa parte do filme apenas como corpo inanimado (ou como manequim, durante as tentativas de reconstituição do caso), só será revivido no momento em que o advogado de acusação põe em jogo a gravação em áudio de uma briga do casal no dia anterior à morte.
Samuel, que então encarna no ator Samuel Theis, por acaso gravava há meses passagens do cotidiano para tentar transformá-las em ficção. A cena da discussão, fundamental para a solução do caso, deixa Noah Baumbach, de “Histórias de um Casamento”, no chinelo.
Mais do que dar palco para ótimos atores (e Hüller tem estofo para levar a Palma de Ouro de melhor atriz mais aqui do que pelo trabalho gélido em “The Zone of Interest”), Triet sabe deixar o espectador ligado no teatro de um tribunal, posicionando a câmera para capturar a tensão de cada nova etapa do caso.
A repercussão do julgamento na mídia (mundo já representado por ela em “La bataille de Solférino”, de 2013) é um detalhe saboroso à parte, bem como a interpretação de Snoop, o border collie, outro membro do filme que merece a Palma canina.
Frenético e elegante, com uma trilha que vai de Albéniz a Chopin, “Anatomie d’une Chute” afastou as nuvens de Cannes na noite deste domingo após uma semana de bastante chuva. Nesta época do ano, o Sol se põe depois das 20h na Riviera. O melhor do evento, ao que parece, também ficou mais próximo do final.
O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo
HENRIQUE ARTUNI / Folhapress