Nas últimas décadas, áreas de preservação do interior de São Paulo podem ter perdido 80 espécies de aves nativas, estima um novo estudo. A grande maioria das aves desaparecidas habitava fragmentos de mata atlântica e provavelmente está sendo vitimada pela progressiva descaracterização de seu habitat em território paulista.
Os dados obtidos pela pesquisa, que acaba de sair no periódico Revista do Instituto Florestal, abrangem quatro áreas de proteção integral num arco que vai de leste a oeste do interior do estado, de São Simão (região de Ribeirão Preto) a Marília, passando também por Paulo de Faria (região de São José do Rio Preto) e Andradina (região de Araçatuba). Todas essas áreas abrigavam originalmente diferentes tipos de florestas associadas ao bioma da mata atlântica, além da presença predominante do cerrado na reserva localizada no município de São Simão.
“As pessoas sempre costumam pensar nos trechos de mata atlântica da serra do Mar e da serra da Mantiqueira, que são mais contínuos e preservados, e as áreas pequenininhas do interior ficam esquecidas”, diz o biólogo Vagner Cavarzere Junior, professor da Unesp de Botucatu e um dos autores do estudo. “Acho que o trabalho é um alerta. Se dentro de uma unidade de proteção integral a gente vê uma riqueza de espécies que está diminuindo, imagine a situação fora delas.”
De um total de 358 espécies mapeadas no interior das reservas em estudos mais antigos, o levantamento feito por Cavarzere Junior e seus colegas conseguiu encontrar 278 aves. A maioria dos levantamentos anteriores nas mesmas áreas tinha acontecido entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 1980. “A exceção é Andradina, em que esse trabalho tinha sido feito em 2010, mas a gente também pode comparar essas informações recentes com um trabalho feito nos anos 1930-1940 em Valparaíso, que fica muito perto”, diz o pesquisador.
Considerando essas datas, o que se pode afirmar, segundo o biólogo, é que mesmo as áreas florestais protegidas por lei correspondem a matas que passaram por diversos episódios de degradação. “Todas elas sofreram corte raso nos anos 1930 por causa da lavoura de café”, explica ele. “Depois, essa vegetação voltou a cresceu, mas sofreu novas pressões de lá para cá.”
Para mapear as espécies de aves, Cavarzere Junior e seus colegas usaram a observação direta dos animais (com a ajuda de binóculos) e também o canto. No levantamento, realizado entre setembro de 2021 e janeiro de 2022, a partir de 15 minutos antes do nascer do sol, os pesquisadores usaram o chamado método das listas de dez espécies. Nele, uma determinada área de mata passa por uma varredura na qual os observadores vão anotando a presença de cada espécie até chegar a um total de dez aves.
Se um membro de uma espécie já registrada aparecer de novo antes que se complete o conjunto de dez espécies, ele “passa a vez”, e a espécie só volta a ser citada novamente na próxima lista de dez. Isso também gera uma estimativa da frequência da espécie naquele local, dividindo o número de vezes que cada espécie foi detectada ali pelo número total de listas compiladas.
A perda de diversidade de aves mesmo dentro das áreas protegidas fica clara com base não apenas nos números brutos de espécies, mas também levando em conta o que tem acontecido com as que são endêmicas (exclusivas de determinado ambiente) e são consideradas ameaçadas de extinção.
Com base nos registros mais antigos, as áreas estudadas abrigariam nove aves endêmicas da mata atlântica, cinco endêmicas do cerrado e 26 espécies ameaçadas. Os dados dos últimos anos, porém, indicaram a presença de apenas uma ave endêmica da mata atlântica e de cinco espécies ameaçadas (o número de espécies endêmicas do cerrado não se alterou).
“O que a gente vê é um predomínio grande das espécies generalistas, que passam boa parte do tempo na borda da floresta ou no dossel [a parte mais alta das árvores]. As que são mais especialistas, que precisam de vegetação madura no interior da mata, não são mais registradas, independentemente dos seus hábitos alimentares ou outros fatores”, afirma o pesquisador.
Aves de rapina de grande porte desapareceram totalmente dos ambientes florestais, por exemplo. Entre as espécies ameaçadas com registro nos locais estudados está a arara-canindé (Ara ararauna) -um casal foi visto pelos autores do estudo sobrevoando a zona urbana de Andradina. “Ainda é possível encontrá-la com mais frequência bem para o noroeste do estado, perto do rio Paraná, algo que não se imaginava até alguns anos atrás.”
O cenário revelado pelos dados indica que o único caminho para uma possível recuperação da biodiversidade do interior do estado é promover a reconexão dos fragmentos de mata atlântica que hoje estão totalmente isolados. “Esperar que a vegetação das áreas protegidas que sobraram se regenere totalmente e atraia essas espécies não vai resolver. No caso da mata atlântica, a gente já sabe que não dá para desmatar mais nada. Já passou da hora de conectar esses fragmentos para ver se, daqui a algumas décadas, poderemos ter alguma diferença positiva”, explica o biólogo.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress