MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Dois yanomamis fazem parte de um grupo de trabalhadores da piaçaba resgatados em condições análogas à escravidão em 2014, de acordo com ação civil pública movida na Justiça pelo MPT (Ministério Público do Trabalho). Os indígenas foram os últimos a receber as verbas rescisórias determinadas pela Justiça do Trabalho.
Os pagamentos só ocorreram oito anos depois, em 2022, em razão da dificuldade de localização dos yanomamis, da falta de documentos básicos exigidos no curso da ação judicial e da inexistência de contas bancárias para o depósito.
A exploração de indígenas -yanomamis e de outras etnias- na extração da piaçaba prossegue, como mostrou a Folha de S.Paulo numa série de reportagens.
O MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas também apontou a continuidade da exploração, em nota enviada ao jornal após a publicação das reportagens. “A exploração do trabalho dos piaçabeiros (indígenas e não indígenas) continua na região do médio e alto rio Negro”, disse.
Em 2014, uma ação do grupo móvel de combate ao trabalho escravo, que incluiu auditores do Trabalho e integrantes do MPT e do MPF, resultou no resgate de 13 trabalhadores que atuavam na extração da piaçaba na região do médio rio Negro.
O grupo de extrativistas passava as noites em barracos de lona, casebre de madeira ou mesmo em embarcações em igarapés próximos dos piaçabais. Nesses locais havia animais peçonhentos como aranha, escorpião e cobra, conforme os documentos da fiscalização.
Não havia pagamento de salário nem garantia de nenhum direito trabalhista. O sistema adotado era o aviamento, em que os chamados patrões e patrõezinhos fornecem mantimentos básicos -como farinha e biscoito- e combustível para os trabalhadores permanecerem por semanas nos piaçabais. O pagamento é feito com a fibra extraída, e há endividamento no curso desse processo.
O grupo de 13 piaçabeiros foi resgatado de condições análogas à escravidão e a Justiça do Trabalho determinou que o patrão identificado, Luiz Cláudio Rocha, o Carioca, pagasse verbas rescisórias e indenizações aos trabalhadores. A decisão foi confirmada em outras instâncias, e houve bloqueio de contas para o ressarcimento.
A reportagem não conseguiu contato com Rocha.
O MPT calculou em R$ 817 mil o total a ser pago aos 13 trabalhadores, conforme valores atualizados em 2020. Estão incluídos no cálculo indenização por dano moral coletivo, indenizações por danos individuais e rescisões indiretas.
No caso dos yanomamis, o dano moral individual foi calculado em R$ 23 mil, em valores atualizados. Já a rescisão deveria ser de R$ 2,4 mil para um e de R$ 3,4 mil para outro.
O pagamento esbarrou na falta de CPF ou de conta bancária, e foi necessário recorrer a comunicados em rádios e ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) no Amazonas para localização dos dois indígenas.
Até fevereiro de 2022, a Justiça do Trabalho não havia conseguido localizar os dois yanomamis. Eles foram localizados nos meses seguintes, e os pagamentos ocorreram até maio daquele ano.
A Folha de S.Paulo mostrou que a extração de piaçaba na região do médio rio Negro inclui a exploração de yanomamis que vivem em aldeias da terra indígena situadas no lado do Amazonas -o território está em dois estados, Amazonas e Roraima.
A exploração, dentro de um modelo rudimentar de endividamento de indígenas e não indígenas, ocorre em meio a um apagão da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na região. O apagão, com atuação de apenas um coordenador substituto, um servidor efetivo e um terceirizado na unidade em Barcelos (AM), prossegue no governo Lula (PT).
Nem a Funai nem o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) responderam aos questionamentos da reportagem.
Patrões antigos seguem atuando na região. É o caso de Carioca, que tem representantes em comunidades nos afluentes do rio Negro e um galpão de piaçaba em Barcelos. O empresário não foi localizado pela reportagem.
Após a publicação da série, o MPT afirmou que vai investigar a exploração de grupos de yanomamis na extração da piaçaba, uma fibra usada na fabricação de vassouras.
As reportagens serão incluídas em procedimento já aberto pelo MPT, como elemento de prova para a investigação e como base para novas diligências a serem feitas na região.
O MPF no Amazonas, em nota enviada à reportagem, disse que segue acompanhando a situação na região. A Procuradoria afirmou que cobra de órgãos do governo do Amazonas e do governo federal o cumprimento de um TCT (termo de cooperação técnica) assinado ainda em 2014, com o propósito de melhorar a cadeia produtiva da piaçaba.
“A realidade é que pouquíssimas medidas concretas foram adotadas de 2014, quando assinado o TCT, até hoje”, cita a nota.
Um procedimento instaurado no MPF investiga o desrespeito a direitos fundamentais de povos indígenas na cadeia da piaçaba. “O MPF tem verificado o cumprimento do termo de 2014, contudo poucas medidas efetivas foram de fato implementadas pelos órgãos públicos. O MPF estuda se será necessário ou não judicializar o tema.”
Uma reunião foi feita em janeiro de 2023, com participação da Procuradoria, ocasião em que a superintendência do Trabalho no Amazonas afirmou que devem ser feitas novas ações de combate ao trabalho escravo na extração da piaçaba, conforme o MPF.
VINICIUS SASSINE / Folhapress