Primeiro centro gaúcho completa 75 anos com mais sotaques e menos rigidez

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Era 5 de setembro de 1947 e o então estudante Paixão Côrtes (1927-2018) teve a ideia de reunir amigos para acompanhar a cavalo a chegada à capital dos restos mortais do general da Revolução Farroupilha David Canabarro. O cortejo vinha de Santana do Livramento, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, até o Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre.

“Naquela época, o pessoal ria do Paixão por se vestir de gaúcho. No cortejo tinha mais cavalos do que gente: eram 14 animais para oito cavalarianos para montar. Eles ficariam conhecidos como os oito fundadores não só do 35 CTG [Centro de Tradições Gaúchas], mas do tradicionalismo como um todo”, diz o capataz (diretor, no linguajar gaúcho) artístico do 35 CTG, Henrique Rodrigues, que está coletando material para um documentário sobre a entidade.

Desde aquele evento, os oito guris vindos do interior do Rio Grande do Sul mantiveram contato e no mesmo ano realizaram o primeiro baile de música gaúcha com fogo de chão, no Teresópolis Tênis Clube. Para se ter uma ideia de como o tradicionalismo engatinhava, a banda teve de ser improvisada com músicos de orquestra. Em janeiro de 1948, o grupo decidiu estabelecer um local em Porto Alegre onde pudesse cultivar a cultura campeira.

Também iniciaram uma pesquisa histórica que resultaria, em abril, na fundação do 35 CTG e de todo um regramento para celebrar a cultura gaúcha da forma apropriada. Apesar das inúmeras alusões à Revolução Farroupilha, revolta separatista iniciada em 20 de setembro de 1835, o movimento não quis comprar briga. Pelo contrário.

A primeira Chama Crioula, que até hoje percorre 30 regiões do Rio Grande do Sul entre agosto e setembro em um candeeiro, foi retirada do Fogo Simbólico da Pátria do 7 de Setembro para significar a união indissociável entre Rio Grande do Sul e Brasil. Um aceno importante para desvincular as vestes gaúchas e outras tradições, como o consumo do chimarrão, de rebeldes separatistas passíveis de perseguição pela ditadura.

Algumas tradições ganharam o cânone, mas foram estalecidas no canetaço. No livro “Nativismo – Um Fenômeno Social Gaúcho”, o escritor e folclorista Barbosa Lessa (1929-2002) conta, por exemplo, como o grupo chegou aos vestidos de prenda.

“E como é que é o vestido das moças? Como modelo, aproximado, só havia os vestidos caipiras, das festas juninas de São Paulo, ou as ‘folhinhas’ anuais distribuídas pela Cia. Alpargatas na Argentina. Paixão encasquetou que deviam ser vestidos compridos até os tornozelos; eu argumentei que se nós, rapazes, estávamos trajando nossas costumeiras bombachas, não carecia que as moças se voltassem para tão longe nos antigamentes; isto não chegou a ser posto em votação, mas o bigodudo Paixão nos venceu pelo cansaço”.

Com o passar do tempo, o Movimento Tradicionalista Gaúcho fez sucesso. Em 1954, Paixão posaria para o Monumento ao Laçador, estátua que recebe os visitantes na avenida dos Estados, próximo ao aeroporto de Porto Alegre. O 35 CTG ganhou do estado um terreno para fazer seu galpão sede na avenida Ipiranga, e o 20 de Setembro se tornou feriado estadual, celebrado como Dia do Gaúcho.

Hoje, há CTGs com os mais diversos sotaques: são mais de 2.500 no Brasil e 12 no exterior, incluindo um na China. Um dos maiores do mundo fica fora do Rio Grande do Sul: é o Sinuelo dos Gerais, em Luís Eduardo Magalhães (BA).

Algumas regras seguem rígidas, outras nem tanto. Foi só no início da década passada, por exemplo, que foi permitido entre os CTGs vestindo trajes civis. Nem mesmo as alpargatas, calçado tradicional do sul e em países vizinhos do Prata, eram permitidas, somente botas. Os CTGs podem ser alugados para eventos -exceto políticos ou religiosos-, mas segue em vigor a regra que só permite que se toquem músicas nativistas.

Nesse ponto, também houve polêmica. No início dos anos 2000, ganhou o noticiário local a disputa entre músicos nativistas e os representantes da chamada tchê music, que também usa ritmos tradicionais, mas com uma sonoridade e apelo que se aproxima ao sertanejo universitário. O músico paranaense Michel Teló, por exemplo, bebeu dessa fonte no início de carreira. Hoje, os dois lados consideram essa disputa pacificada.

Barradas inicialmente na fundação do MTG, as mulheres passaram a integrar oficialmente o movimento em 1950, após uma viagem ao Uruguai em que os gaúchos observaram mulheres fazendo parte naturalmente dos grupos de dança.

Elas demoraram, todavia, para exercer liderança no movimento. Até hoje o MTG teve apenas duas “patroas” (como o movimento chama o presidente ou a presidente). Elas lideram o movimento de 2012 a 2019 em quatro mandatos consecutivos de dois anos.

Rodrigues garante ainda que os CTGs se tornaram mais inclusivos. Nas coreografias, porém, os casais seguem representados por um homem e uma mulher, vestidos rigorosamente de bombachas e vestido longo desde 1948.

CAUE FONSECA / Folhapress

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