SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Acusado de roubo e tentativa de latrocínio, Igor Barcelos, 26, foi preso em 2019 após a vítima identificá-lo no álbum de fotos com vários suspeitos -recurso comum de investigação no Brasil e muitas vezes a única prova apresentada em julgamentos.
Após três anos, um grupo de profissionais voluntários do direito conseguiu mostrar que o jovem estava em um hospital na zona leste de São Paulo, a 24 km do local onde ocorria o crime.
Barcelos é um dos seis presos acusados injustamente por um crime que foram soltos pelo Projeto Inocência Brasil, que completa cinco anos. A iniciativa é uma das 68 organizações da rede global Innocence Network (Rede Inocência, em inglês), fundada em 1992 nos Estados Unidos e cuja atuação na defesa de presos inocentes já tirou 624 pessoas da cadeia.
“É um fenômeno universal. Por causa de um erro uma pessoa pode acabar esquecida numa cadeia. Não é uma exclusividade do Brasil, mas há particularidades em nosso país”, afirma Dora Cavalcanti, advogada criminalista que trouxe o projeto ao país.
Ela se refere a fatores como racismo e o corporativismo do Judiciário, que resultam em falhas e criam resistência aos avanços no âmbito criminal. Dos 5.000 pedidos de revisão criminal feitos ao Projeto Inocência em cinco anos de atividades, 95% eram casos que envolviam homens, dos quais 60% eram negros.
Três dos seis presos inocentes que foram soltos no Brasil eram negros.
Suscetível a falha, o recurso de reconhecimento fotográfico que levou Barcelos a ser condenado a 15 anos por um crime que não cometeu é comum no Brasil.
Em 2020, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) julgou um habeas corpus na esteira da prisão de dois homens suspeitos de roubo em Santa Catarina. Condenados a mais de cinco anos via reconhecimento fotográfico, a Defensoria Pública entrou com o pedido de habeas corpus, e o Projeto Inocência Brasil foi parte interessada (amicus curiae) da defesa.
“Como realizamos em outros casos, produzindo estudos e provas técnicas, fizemos sustentação oral e conseguimos provar no julgamento que o reconhecimento está sujeito a falhas da memória humana”, afirma Cavalcanti.
O relator do julgamento, Rogério Schietti Cruz, da 6ª turma do STJ, conferiu nova interpretação ao artigo 226 do Código Penal -fato considerado “histórico” pela advogada. No entendimento do relator, o reconhecimento por foto deve servir apenas na identificação do suspeito, e não como única prova para as condenações. O STJ absolveu um dos suspeitos e reduziu a pena do outro.
Desde o julgamento, o precedente foi citado em 302 novos casos que chegaram à corte. “O projeto tem esse viés multiplicador. Além disso, há um fator didático também, pois deixamos um legado para familiares e aos envolvidos em prisões injustas”, afirma Cavalcanti.
De acordo com o Innocence Project Nova York, em 70% dos 375 casos de prisões injustas, a principal causa do erro foi o reconhecimento equivocado. No Brasil, embora não haja uma base unificada com esses dados, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou relatório em 2022 acerca das condenações baseadas em reconhecimento fotográfico.
Os pesquisadores analisaram 242 condenações baseadas em reconhecimento fotográfico, entre janeiro e junho de 2021. Em 3% dos casos foram constatados erros no reconhecimento que levaram a prisão dos suspeitos, dos quais 80% permaneceram mais de um ano atrás das grades.
“Metas de prisões e produtividade também influenciam na prisão descriteriosa de inúmeras pessoas e estão inseridas em uma pauta punitivista do Judiciário. Além disso, existem barreiras crônicas de corporativismo, que nos dificulta a provar que existem falhas no sistema”, afirma.
De acordo com o advogado criminal Leandro Sacerdo, o sistema judiciário manifesta a questão do corporativista quando não pune os erros cometidos nas investigações, o que, em algumas situações, contém elementos de má-fé.
“Por vezes, o corporativismo aparece quando o Judiciário age como se fosse protetor do trabalho da polícia”, afirma Sacerdo.
Sacerdo conta que, via de regra, a população confia na opinião policial, que pode influenciar nas investigações ao induzir as vítimas ao erro durante o reconhecimento. “Na hora, o policial aponta para o suspeito dele e pergunta: ‘Não é esse daqui?’. Assim, a vítima fica sugestionada. Os álbuns contêm dados das pessoas que têm passagens pela polícia, e por isso é um método viciado: você só reincrimina”, explica.
PEDRO MADEIRA / Folhapress