CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Depois de uma primeira semana pesada e introspectiva, com filmes sobre nazismo, morte, julgamento, saúde mental e decisões morais, a seleção oficial do Festival de Cannes deixou a esperança para os últimos dias.
A ideia, velha para alguns, contagiou o frio “Fallen Leaves”, o inventivo “Asteroid City”, e agora os dois filmes exibidos nesta quarta-feira, “Il Sol Dell’Avvenire”, de Nanni Moretti, e “Pot-au-Feu”, dirigido por Tran Anh Hung.
No caso do veterano italiano, a melancolia caminha desde o início com o bom humor. Um dos poucos a manter o costume chapliniano de dirigir e estrelar seus trabalhos, Moretti se entrega ao papel de um cineasta obsessivo, não por acaso chamado Giovanni, que está ficando para trás.
Depois de 40 anos, sua esposa e produtora de seus filmes, Paola, papel de Margherita Buy, quer se separar dele, mas não sabe como fazê-lo. Teme que ele decaia, ou pior, se mate. Aliás, é de uma cena de suicídio que o Giovanni roda seu novo projeto, ambientado na Itália de 1956, a partir de um núcleo do Partido Comunista Italiano que quer romper com a União Soviética após a invasão da Hungria.
É um movimento humanista, uma solidariedade que falta em relação à atual Guerra da Ucrânia. Não importa para Giovanni que seu retrato de época seja impreciso: ele não aceita que os cenários tenham cartazes de Stálin nem quer utilizar fac símiles dos jornais de época.
Giovanni, como Moretti, quer transformar sua percepção de mundo e de cinema em imagem e não raro vai brigar com seus atores e técnicos –quer fidelidade ao roteiro, se irrita com improvisos, é rodeado por ignorantes que entendem comunismo como sinônimo de russo e esquecem fones de ouvido pelo cenário do seu filme de época.
O ator Moretti dá conta de divertir com seu jeito rabugento e palhaço. Há uma pureza que contamina o trabalho, sobretudo em suas caretas e nos números musicais, ora integrados ao set do projeto de época, ora em forma de sonhos nos quais Giovanni se imagina fazendo um longa romântico, cheio de canções italianas, sobre a relação com sua mulher.
É singelo. Por vezes os atores só cantam olhando para a câmera, ou rodopiam livremente. Esse humor conversa ainda com cenas recheadas de referências cinéfilas, de Cassavetes a irmãos Taviani.
Um dos melhores momentos de “Il Sol Dell’Avvenire” parte dessa chave. Giovanni vai acompanhar uma outra produção da esposa, dirigida por um novato fascinado pela violência gratuita do cinema americano, e tenta impedir que ele filme uma execução. “Faz mal para o seu filme e para o público que nos vê”, diz Giovanni, citando Skolimowski e Scorsese.
O debate é levado com humor, mas reflete uma indignação com o cinema contemporâneo. A Netflix, nomeada diretamente, é outra vítima da sua acidez. Quando vai atrás de financiamento, ouve dos executivos que “os conteúdos são para 190 países”. “Nada de atores italianos”, diz um deles. “A Itália não tem um star system.”
Moretti não se incomoda de soar como um homem preso ao passado ou ingênuo. O que interessa, ao fim, é celebrar o prazer de seguir fazendo cinema com sua gente e seus amigos. Quando tudo parece degringolar para Giovanni, um lampejo de esperança brilha no horizonte. Aos niilistas de plantão, melhor distância.
Já o prazer celebrado por “Pot-au-Feu” é de outra natureza. O longa de Tran Anh Hung tem uma semelhança com “Bacurau” –ambos falam de guisado. O suco de caju não aparece no filme francês, mas oferece em contrapartida mais de duas horas de toda sorte de pratos, do consommé às sobremesas da alta-cozinha.
A refeição do título é um pouco diferente do cozido brasileiro, incorporando mais ervas aromáticas e tutano, servido como sopa e prato principal –é um prato base da culinária francesa.
Da mesma forma que “Firebrand” de Karim Aïnouz não é um filme brasileiro, Hung, vietnamita, se entrega ao estilo de um cinema comercial francês com pitadas de inventividade que salvam o filme da chatice.
A história do gourmet Dodin-Bouffant, vivido por Benoît Magimel, e sua cozinheira Eugenie, papel de Juliette Binoche, com quem trabalha há 20 anos, é contada sem pressa, com uma câmera que prefere muitas vezes observar panelas em vez dos rostos dos atores.
O prólogo, com cerca de vinte minutos, tem poucos diálogos. As estrelas são os ingredientes que saltam de panelas de cobre para travessas de ferro, refogados que regam um carré de cordeiro assado lentamente, uma arraia feita no leite e limão, camarões e um “baked Alaska”. São etapas do banquete de Dodin e sua entourage de apreciadores da boa mesa.
Não é um filme para despertar grandes reações, mas sabe rir dos trejeitos da cozinha francesa enquanto contempla sua qualidade única e inacessível –o estrelado chef Pierre Gagnaire, com 14 estrelas Michelin, foi consultor e até faz uma ponta.
A obra repete sua estrutura até o fim, tentando costurar a relação entre os dois protagonistas por meio da comunicação na cozinha e diálogos sutis. Muitos detalhes, como a paixão do casal e a tragédia que se aproxima de um deles, dependem de pequenos gestos e de uma atuação contida de Binoche e Magimel.
Ideal para ser visto após o cafézinho do almoço, “Pot-au-Feu” traz um pouco de doçura para a reta final de Cannes. Só não é um prato memorável.
HENRIQUE ARTUNI / Folhapress