Boiada está passando de novo, dizem ONGs sobre esvaziamento do Meio Ambiente

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Considerado “um passo atrás”, o relatório do deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL) sobre a MP 1154, que estrutura órgãos do Executivo, é visto por ambientalistas como uma inversão do propósito anunciado pelo governo Lula (PT) na sua chegada ao poder.

Em vez de reestruturar as políticas ambientais desmontadas no governo de Jair Bolsonaro, a medida provisória pode acabar consolidando, na forma de lei, o esvaziamento dos órgãos ambientais, de acordo com a avaliação de ONGs socioambientais e notas técnicas do MMA (Ministério do Meio Ambiente).

A proposta retira do MMA as competências sobre o CAR (Cadastro Ambiental Rural), a ANA (Agência Nacional de Águas) e a gestão de resíduos sólidos e saneamento, além de remover do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas duas das suas atribuições principais: a demarcação de terras indígenas e a administração da Funai.

“O Congresso está passando uma boiada na proposta de reestruturação administrativa do governo Lula e as áreas de meio ambiente e indígena ficam com a maior conta”, afirma Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, rede que reúne 94 organizações socioambientais.

O movimento do Congresso retoma, na avaliação de Astrini, o desmonte ambiental ocorrido sob Bolsonaro. “A boiada no governo Bolsonaro se deu de várias formas: seja por decreto, por ações de esvaziamento dos órgãos de controle ou por desidratação dos ministérios que não interessavam ao governo, como o Meio Ambiente”, relembra.

“Passar a boiada” é uma referência à expressão usada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, atual deputado federal pelo PL-SP, para defender o enfraquecimento de políticas ambientais na gestão Bolsonaro.

Carta assinada por 30 organizações da sociedade civil e encabeçada pelo movimento da juventude Fridays for Future Brasil chama a medida provisória de “tentativa sem fundamento”.

“É importante que o presidente Lula e os parlamentares da base aliada se posicionem contra essa tentativa sem fundamento de esvaziar os ministérios em menos de seis meses de governo. Não podemos deixar a boiada passar independente de qual governo esteja no poder”, diz o texto.

Funcionários da área ambiental, por meio da Ascema (Associação Nacional dos Servidores de Meio Ambiente) também expressaram críticas em carta.

“É necessário questionar a quem interessa esvaziar o MMA, quebrar políticas em meio a um cenário de mudanças climáticas e retirar um compromisso com o meio ambiente equilibrado dessas áreas”, destaca o documento.

Em nota, o WWF-Brasil afirmou que “está nas mãos do Congresso Nacional garantir a reconstrução das políticas públicas socioambientais, desidratadas durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro”. Para a ONG, “a MP 1154 caminha nessa direção, no entanto, está ameaçada”.

“A nova redação tira importantes instrumentos de política ambiental do MMA, transferindo-os para ministérios sem a competência técnica necessária, além de esvaziar as atribuições do Ministério dos Povos Indígenas”, cita ainda o WWF, que defende, junto a outras organizações, a manutenção do texto original da medida provisória, da forma como foi enviado pelo governo ao Congresso.

O esvaziamento proposto no novo texto da MP gerou também reação interna na pasta ambiental.

Nota assinada pelo secretário de controle do desmatamento do MMA, André Rodolfo de Lima, em despacho enviado à ministra Marina Silva, afirma: “Lembre-se que este governo se comprometeu a reestruturar o Sistema Nacional de Meio Ambiente e não o contrário”.

Reunindo avaliações técnicas das secretarias do MMA sobre as implicações do relatório do deputado Bulhões Jr, a nota técnica aponta prejuízos na implementação das políticas ambientais.

“Prevalecerá a ótica da água apenas como insumo para as atividades humanas, negligenciando a atuação para a manutenção dos processos ecológicos, das comunidades e povos tradicionais e à adaptação às mudanças climáticas”, aponta o texto, ao avaliar a proposta de transferência da ANA (Agência Nacional de Águas) para o MDR (Ministério de Desenvolvimento Regional).

Na terça-feira (23), uma manifestação assinada por três ex-diretores da ANA pediu ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ao relator da MP, Isnaldo Bulhões, que a agência permaneça na pasta ambiental.

“Não há qualquer benefício com tal transferência. Pelo contrário, colocar a regulação sob o teto ministerial responsável por obras de uso de água reduzirá a independência regulatória da ANA e certamente prejudicará o uso sustentável dos recursos hídricos e a agenda ambiental do país”, diz a manifestação.

Ainda que, de forma geral, a nota técnica do MMA defenda que os órgãos e competências ambientais permaneçam no Ministério do Meio Ambiente, como acontecia historicamente até o governo Bolsonaro, há uma ressalva: o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa) deveria ser mantido no Ministério das Cidades, segundo o parecer da pasta.

O sistema já era parte do secretaria de saneamento, do Ministério das Cidades, e foi transferido ao MMA através da MP enviada por Lula ao Congresso.

“O Sinisa trata das questões da prestação de serviços do saneamento, e não da gestão de recursos naturais ou da gestão de bacias, ou ainda de temas de segurança hídrica e poluição das águas (que seriam atribuição da SQA/MMA). Portanto, não temos óbices ao Sinisa voltar ao Ministério das Cidades”, diz a nota.

O parecer do MMA se opõe, em especial, à transferência do CAR (Cadastro Ambiental Rural) para o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos.

Como base do posicionamento, a nota cita o artigo 17 da Política Nacional do Meio Ambiente: “as ações de licenciamento, registro, autorizações, concessões e permissões relacionadas à fauna, à flora, e ao controle ambiental são de competência exclusiva dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente”.

A proposta sobre a transferência do CAR gerou críticas também do agronegócio.

“Tal proposta resultará na paralisação da implementação do Código Florestal, impactando negativamente os produtores rurais brasileiros”, afirma o produtor rural João Adrien.

Atual vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, Adrien ocupou cargos de alto escalão do Ministério da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro, incluindo o posto de diretor de regularização ambiental do Serviço Florestal Brasileiro, então transferido à Agricultura.

“[A transferência] resultou em atraso de pelo menos 12 meses no avanço de novos módulos e no apoio aos estados”, afirma Adrien sobre a experiência na gestão anterior. Segundo ele, o atraso gera prejuízos aos produtores rurais que aderem à regularização ambiental e buscam reverter multas ambientais.

Ele também pontua que o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos não tem competência técnica para administrar o sistema do CAR junto aos estados, o que deve levar a uma pulverização de sistemas estaduais e, consequentemente, mais insegurança jurídica para a política.

ANA CAROLINA AMARAL / Folhapress

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