SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O agenciamento irregular de serviços, a abordagem agressiva a famílias enlutadas e a desinformação sobre gratuidades e preços populares têm sido problemas recorrentes nos primeiros meses do Serviço Funerário de São Paulo sob gestão privada. Em março, a operação dos cemitérios públicos da capital foi concedida a quatro empresas do ramo.
A fiscalização frágil expõe a população a golpes, aplicados por atravessadores, e a cobrança de tarifas abusivas por vendedores a serviço das concessionárias. As abordagens acontecem no SVO (Serviço de Verificação de Óbitos) da capital, na zona oeste, que deixou de ter uma agência funerária oficial em abril. Desde então, a presença dos aliciadores se tornou ostensiva e não há quem oriente a população sobre seus direitos.
As empresas negam irregularidades. Dizem que funcionários são orientados a informar clientes sobre todos os preços disponíveis e que a inclusão de serviços desnecessários não é autorizada.
A professora Karina Oliveira, 30, tinha acabado de reconhecer o corpo da mãe, morta em 25 de março, quando foi abordada por uma vendedora que se apresentou como funcionária da Velar SP, uma das novas operadoras do serviço.
O orçamento para a cremação, último pedido da mãe, surpreendeu pelo valor: R$ 6.100, conforme apresentado pela vendedora no pátio do SVO.
“Pedi o pacote mais simples e mais barato, e ela disse que era esse o preço. Não falou nada sobre funeral social ou gratuidade, à qual tínhamos direito”, disse Karina, moradora de Cidade Patriarca, na zona leste.
Ela conta que, mesmo argumentando que não tinha o dinheiro, foi constrangida pela representante comercial a contratar o serviço ali mesmo, sem passar pela agência funerária. “Ela [a vendedora] pagou uma taxa de R$ 1.800 com o próprio cartão e depois foi até o velório para acertar comigo. Para pagar, tive que pegar emprestado o cartão de crédito de uma amiga”, relatou.
Karina não soube na hora, mas foi vítima de um golpe e acabou pagando mais que o dobro do valor do serviço prestado. A surpresa veio mais de um mês depois, quando recebeu as notas fiscais referentes à contratação.
Uma delas, no valor de R$ 3.256, foi emitida pela empresa da própria vendedora, com sede em Jandira (Grande São Paulo). Entre os itens discriminados no documento fiscal, constava o atendimento por agente funerário (R$ 400), assistência funeral (R$ 1.400) e tanatopraxia (R$ 1.456) -serviços que não foram informados no ato da venda. Segundo a Velar SP, essa vendedora não é funcionária da empresa.
“Eu nunca tinha feito velório antes e abusaram de mim em um momento de fragilidade. Agiram pelo psicológico para faturar em cima”, disse Karina, que nem sequer recebeu uma urna para depositar as cinzas da mãe, entregues em um saco plástico.
Outras vítimas relataram abordagens parecidas quando foram reconhecer o corpo de algum familiar no SVO, órgão responsável por emitir declarações de óbito por causas naturais. Os aliciadores ficam em frente à portaria, no pátio e até mesmo do lado do balcão de atendimento. Funcionários da instituição e também do IML (Instituto Médico Legal), que fica na mesma rua, orientam famílias a contratarem o serviço por intermédio desses vendedores, que não têm autorização para trabalhar lá.
A reportagem esteve no SVO três vezes nas últimas semanas e fez o orçamento de alguns serviços. Um vendedor, que se apresentou como funcionário da Velar SP e carregava inclusive formulários com a marca da empresa, disse que o pacote mais barato para cremação sairia por R$ 5.800. De acordo com a tabela de preços da concessionária, porém, o plano popular deveria custar R$ 2.300.
Quando consultado sobre o preço do sepultamento no cemitério São Pedro, o vendedor inflou os valores mais uma vez. Segundo ele, o pacote incluindo sala de velório e aluguel de gaveta custaria R$ 3.600, mas, de acordo com a mesma tabela de preços, o plano popular deveria ser oferecido a R$ 1.700.
Em dado momento, um segurança questionou a presença do aliciador no local e disse que ele não poderia abordar as pessoas daquela maneira. O homem respondeu que somente um fiscal poderia tirar ele de lá e continuou atendendo algumas famílias que aguardavam liberação de corpos.
Orientar as pessoas sobre os preços corretos é obrigação das empresas, segundo o contrato assinado com a prefeitura, mas frequentemente as informações oferecidas são incompletas e enganosas.
O problema também acontece no atendimento telefônico. Com exceção do Grupo Cortel, que não apresentou o orçamento solicitado, as empresas cotaram planos a partir de R$ 2.800, preço bem acima do padrão popular. Questionada, a Prefeitura de São Paulo disse que a não oferta de planos básicos e gratuidades pelas concessionárias consiste em infração contratual.
Um funcionário público, que pediu para não ser identificado por medo de represálias, disse que foi abordado depois de reconhecer o corpo de uma familiar que morrera aos 89 anos. O preço acordado para o sepultamento no Cemitério Itaquera foi de R$ 3.500, mas, no velório, uma taxa extra de R$ 1.000 foi cobrada dos familiares, que tiveram que fazer uma vaquinha com os vizinhos para cobrir os custos.
O espaço do SVO é disputado por atravessadores, que muitas vezes usam as empresas regulares como fachada para cooptar clientes. O serviço é clandestino e com frequência resulta em preços abusivos, pagamento duplicado de taxas e aplicação de procedimentos desnecessários. O vendedor não fecha negócio se o potencial cliente insistir que tem direito à gratuidade ou pretende contratar o funeral social (o mais simples oferecido nos cemitérios municipais, por R$ 566).
Segundo a administração municipal, apenas dois fiscais trabalham no local para orientar a população a procurar agências próximas para a contratação do serviço funerário e não há perspectiva de ampliação das equipes. Os profissionais não impediam a atuação dos arrastadores.
Um vendedor que se identificou como representante do Grupo Maya tenta conquistar o cliente pela comodidade. Ele afirma que consegue ter acesso à declaração de óbito mesmo sem estar acompanhado de familiares. O próprio SVO alerta, em seu site, que essa oferta é irregular: a família deve estar presente quando o corpo é retirado.
Na semana passada, o órgão publicou uma nota alertando sobre o golpe. O texto orienta que a família nunca deve fornecer seus dados (como nome, CPF e endereço) ou pagar por serviços “antes de ter certeza de que a concessionária é idônea e regulamentada”.
Os atravessadores também oferecem velório em cemitérios particulares da Grande São Paulo. Como alternativa a um enterro no cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, um vendedor ofereceu espaço no Jardim da Paz, em Embu das Artes. Pelo mesmo valor (R$ 4.000), o cliente teria direito a um caixão melhor e mais tempo de velório fora da capital.
OUTRO LADO
Questionada, a Prefeitura de São Paulo disse que não recebeu nenhuma das reclamações citadas na reportagem. A gestão municipal lembrou que as concessionárias dos cemitérios têm obrigação de atender pessoas com direito à gratuidade, assim como oferecer os pacotes básicos da concessão.
Deixar de oferecer a gratuidade ou pacotes da concessão é infração contratual, reiterou a prefeitura. O Serviço Funerário mantém dois fiscais no SVO, disse a gestão municipal, “com atribuição de fiscalizar a remoção de óbitos à luz da legislação vigente”.
A Velar SP afirmou, em nota, que “não se responsabiliza quanto ao trabalho de empresas ou agentes que atuam de forma clandestina na cidade de São Paulo e não autoriza nenhuma outra empresa a oferecer serviços, quaisquer que sejam, em seu nome”. A empresa diz que, no caso dos prejuízos causados à professora Karina Oliveira, “os serviços funerários em questão não foram contratados originalmente com a Velar SP e a vendedora não nos representa”.
O Grupo Maya disse que “existem funerárias particulares irregulares que podem se passar por agenciadores das concessionárias com o intuito de ludibriar as famílias e realizar contratações irregulares, cobrando serviços indevidos e com valores maiores”.
A Consolare afirmou que “irá averiguar a divergência de valores informada”. E disse que reforçou o alerta sobre funerárias irregulares.
SERVIÇO
Consulte os preços tabelados para os cemitérios municipais de São Paulo nos sites das concessionárias e saiba onde estão as agências funerárias mais próximas do SVO:
Grupo Maya: Cemitério Lapa, na rua Bergson, 347, Vila Leopoldina
Consolare: rua da Consolação, 1.660, Consolação
Cortel: Cemitério Araçá, na avenida Doutor Arnaldo, 666, Sumaré
Velar SP: rua Professor Antônio Prudente, 194, Liberdade
LEONARDO ZVARICK E TULIO KRUSE / Folhapress