Lançada por Marisa Monte no inesquecível álbum Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, de 2000, a canção Gentileza foi inspirada no famoso Profeta Gentileza, figura icônica da cidade do Rio de Janeiro, que morreu há exatos 27 anos.
Quem foi o Profeta Gentileza?
Na verdade, José Datrino – que depois ficou conhecido como Profeta Gentileza, nasceu no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Cafelândia, em 1917. Na infância, ele lidava diretamente com a terra e com os animais. Para ajudar a família, puxava uma carroça, vendendo lenha nas proximidades.
Por volta dos 13 anos de idade, passou a ter premonições sobre ter uma missão na terra, acreditando que, um dia – depois de constituir família, filhos e bens – deixaria tudo isso em prol de sua missão. Este comportamento causou preocupação em seus pais, que chegaram a suspeitar que o filho sofria de algum tipo de loucura, chegando a buscar ajuda em curandeiros espirituais.
Depois de um tempo, José Datrino mudou-se para o Rio de Janeiro, constituiu família e tornou-se empresário, dono de uma transportadora de cargas no bairro de Guadalupe.
Até que, no dia 17 de dezembro de 1961, quando José estava com 44 anos, ocorreu – na cidade de Niterói – a tragédia do Gran Circus Norte-Americano, considerada uma das maiores fatalidades em todo o mundo circense. Foi um grande incêndio no circo, em que morreram mais de 500 pessoas, a maioria, crianças.
Seis dias após o acontecimento, José Datrino acordou alegando ter ouvido “vozes astrais”, segundo suas próprias palavras, que o mandavam abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao mundo espiritual.
Ele pegou um de seus caminhões e foi para o local do incêndio, afirmando ver – no circo destruído – uma metáfora para o que estava acontecendo no mundo, com a brutalidade de nosso sistema de relações. E anunciava que a “gentileza é o remédio para todos os males”.
“Gentileza gera gentileza!”
José Datrino plantou um jardim e uma horta sobre as cinzas do circo e aquela foi sua morada por quatro anos. Como um consolador voluntário, confortou os familiares das vítimas da tragédia com suas palavras de bondade, apresentando o real sentido das palavras “agradecido” e “gentileza”.
Foi a partir daí que passou a se chamar José Agradecido ou Profeta Gentileza.
Após deixar o local, que ficou conhecido como Paraíso Gentileza, o Profeta Gentileza começou a sua peregrinação e a sua jornada como personagem andarilho.
A partir de 1970, passou a percorrer as cidades do Rio de Janeiro e de Niterói com sua longa barba e uma túnica branca, levando palavras de amor, bondade e respeito pelo próximo e pela natureza a todos que cruzassem seu caminho, além de oferecer-lhes flores.
Entre suas principais mensagens, a famosa frase: “Gentileza Gera Gentileza”.
Aos que o chamavam de louco, ele respondia:
“Sou maluco para te amar e louco para te salvar”.
O Profeta Gentileza fez isso por mais de 20 anos.
Mas o que Marisa Monte tem a ver com o Profeta Gentileza?
A partir de 1980, Gentileza escolheu 56 pilastras do Viaduto do Gasômetro ou do Caju, que vai do Cemitério do Caju até o Terminal Rodoviário do Rio de Janeiro – em uma extensão de aproximadamente 1,5 km – e as encheu de inscrições em verde-amarelo, propondo sua crítica do mundo e sua alternativa ao mal-estar da civilização.
Os murais eram como um livro a céu aberto sobre o concreto, e ficaram muito famosos no Rio de Janeiro, por estarem bem na entrada da cidade carioca, para quem chegava de ônibus ou de carro.
O Profeta Gentileza faleceu em 1996, aos 71 anos, e – com o decorrer dos anos – os murais foram sendo danificados por pichadores, sofreram vandalismo, e – mais tarde – foram cobertos com tinta de cor cinza pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
Marisa Monte – como boa carioca – sempre amou ver as inscrições de Gentileza nas ruas da cidade, ficava fascinada com aquilo desde criança. Certa vez, em 1998, a cantora estava passando pela área do Cais do Porto com seu amigo e parceiro Carlinhos Brown e quis mostrar para o baiano algo especial da sua cidade, que ela sabia que ele ia gostar.
Foi quando procurou pelos pilares do Viaduto do Caju, os escritos de Gentileza. Quando chegou ao local e descobriu que eles haviam sido apagados pela Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro, ficou desolada, pensando nos inúmeros significados desse ato para uma metrópole como o Rio. O legado do Profeta Gentileza havia desaparecido para sempre.
Na mesma noite, Marisa compôs Gentileza.
“Apagaram tudo, pintaram o muro de cinza…”
A eliminação das inscrições foi criticada por diversas pessoas e organizações. A voz de Marisa Monte se uniu a muitas outras – como a do professor Leonardo Gelman, da ONG Rio Com Gentileza, e a obra do Profeta foi recuperada por artistas e restauradores a partir do ano 2000, sendo tombada como patrimônio urbano pelos órgãos de proteção da prefeitura da cidade carioca e voltando a fazer parte do inventário afetivo do Rio de Janeiro, apesar de já ter sofrido outros atos de vandalismo depois disso.
O videoclipe da canção Gentileza mostra cenas do cotidiano do Rio de Janeiro, incluindo Marisa dentro de um ônibus que passeia pela cidade e também imagens do próprio Gentileza, andando pelas ruas do Centro, carregando sua mensagem para o povo. As pilastras com suas inscrições também aparecem no clipe.
Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade, merecemos saber mais sobre a história do Profeta Gentileza, que inspirou uma das cantoras mais importantes da nossa MPB a compor essa verdadeira poesia musical.
Letra da música “Gentileza”, de Marisa Monte
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tintaApagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta frescaNós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de GentilezaPor isso eu pergunto
A você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoriaO mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor: Palavra que liberta
Já dizia o profeta