Marco temporal de terras indígenas é um litígio climático, diz Maurício Terena

OXFORD, INGLATERRA (FOLHAPRESS) – Maurício Terena assumiu a coordenação jurídica da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), uma das maiores organizações indígenas do país, há quatro meses, substituindo Eloy Terena, atual secretário-executivo do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas.

Nos próximos dias, o advogado indígena tem entre as suas prioridades acompanhar um processo definitivo e histórico para o futuro dos povos indígenas do Brasil, a votação do julgamento do marco temporal.

A tese, em tramitação no STF (Supremo Tribunal Federal), estabelece que os povos indígenas só têm direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, ou que naquela data estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

O STF deve retomar o julgamento, parado há dois anos, em 7 de junho.

Maurício Terena define o marco temporal como um litígio climático. “Os impactos do julgamento do marco temporal não vão atingir apenas a vida de nós, povos indígenas, vão atingir a vida de todos e todas”, afirma. “Tanto no Brasil quanto na humanidade, considerando que as terras indígenas são um ativo importantíssimo para o enfrentamento da crise climática que estamos vivenciando neste século”, completa.

Para justificar a sua afirmação, o advogado reitera dados de estudos científicos que mostram que os territórios indígenas são essenciais para as metas climáticas do país e as áreas com as menores taxas de desmatamento na Amazônia. “A política ambiental do Brasil precisa ser pensada a partir das terras indígenas, com os povos indígenas”, defende.

Antes do julgamento no STF, porém, ele terá que fazer frente ao PL (projeto de lei) 490, aprovado para ser votado com urgência pela Câmara dos Deputados na semana passada. O mérito do texto deve ser votado nesta terça-feira (30).

O PL 490 transfere a competência de demarcação de terras indígenas para o Legislativo e abre brechas para a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras de infraestrutura dentro das terras indígenas.

Na visão do advogado, essa tentativa da Câmara de votar a matéria rapidamente, antes do STF, não respeita o rito legislativo.

“Quando você quer alterar direitos como esse, você precisa fazer por emenda à Constituição, porque você está fazendo uma alteração, você está mitigando, reduzindo direitos fundamentais. Eles estão fazendo isso por uma lei ordinária. Isso é surreal e tecnicamente equivocado.”

 Como o movimento indígena pretende reagir à votação de urgência do PL 490? Convocamos uma reunião extraordinária com todas as organizações regionais que integram a Apib, presentes em todo o território nacional, entendendo que é o primeiro tiro de canhão contra os povos indígenas.

Dentro do Congresso, existe uma bancada ruralista que está muito resistente em ver os direitos dos povos indígenas avançarem. Retiraram a demarcação do Ministério dos Povos Indígenas [por meio da medida provisória 1.154, aprovada em comissão na semana passada, que dá essa atribuição ao Ministério da Justiça] e aprovaram um requerimento de urgência com uma votação que muito nos chamou a atenção.

O Congresso Nacional não se atenta ao rito legislativo correto. Quando você quer alterar direitos como esse, você precisa fazer por emenda à Constituição, porque você está fazendo uma alteração, você está mitigando, reduzindo direitos fundamentais. Eles estão fazendo isso por uma lei ordinária. Isso é surreal e tecnicamente equivocado.

Então, vamos fazer mobilização e denúncia, tanto a nível nacional quanto internacional. Vai ter luta indígena.

A Apib esteve no início do ano com a presidente do STF, a ministra Rosa Weber. Como foi esse encontro e qual foram, digamos, as recomendações do movimento indígena para ela? Rosa Weber foi uma ministra extremamente sensível durante a sua administração no que tange a matéria dos povos indígenas. Nós levamos a ela a necessidade dela pautar o julgamento do marco temporal.

Ela nos perguntou se era interesse do movimento indígena fazer um acordo ou não naquele processo. Nós, enquanto Apib, dissemos que não, porque existe uma regra no direito: que direitos fundamentais não são passíveis de negociação. Nossos territórios não são passíveis de negociação.

Você integra um grupo de advogados indígenas e não indígenas que atua em defesa dos povos indígenas no julgamento do marco temporal no STF. Qual é o foco do trabalho deste grupo no momento? No próximo dia 7, o que vai ser decidido é a continuidade da existência dos povos indígenas, considerando que os territórios tradicionais são fundamentais para que a gente exerça nossas culturas.

O resultado do julgamento está extremamente em disputa. A gente considera que ao nosso favor tem a ministra Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber. E contrários Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Kassio Nunes e André Mendonça.

Existem dois ministros que estão um pouco indefinidos, Dias Toffoli e Luiz Fux. Então, a gente está justamente montando estratégias para sensibilizar esses dois ministros, evidenciando que eles não vão querer ter o peso de justamente decretar o fim de uma política extremamente eficaz contra a luta contra as mudanças climáticas.

A gente está se articulando, mobilizando parceiros e artistas. Também estamos montando estratégias internacionais com os mecanismos de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A gente está numa operação de guerra justamente para tentar dizer o óbvio para o Supremo Tribunal Federal.

Em fevereiro, foi anunciado que a AGU (Advocacia-Geral da União) iria criar uma equipe específica para atuar na defesa dos povos indígenas. Quais são as suas primeiras observações sobre a atuação da AGU no novo governo? A AGU, sem sombra de dúvida, tem sido uma instância que a gente tem olhado com muita desconfiança. Primeiro, porque existe um parecer, o 001, que institui o marco temporal, que foi criado dentro da gestão Temer e vinculou toda a administração pública, inclusive a Funai, à obrigatoriedade de aplicar o marco temporal pela via administrativa.

Assim que a ministra Sonia [Guajajara] chega ao Ministério dos Povos Indígenas, ela puxa uma reunião com o ministro da AGU [Jorge Messias], pedindo a revogação deste parecer. Só que até agora não foi revogado, e informações de bastidores que a gente tem são de que a bancada do agronegócio tem se reunido sistematicamente com o ministro para pedir a não revogação.

O julgamento da tese do marco temporal tem levado você e outros advogados indígenas a debates em diferentes escolas de direito do país, como a da Fundação Getulio Vargas. O que essa troca tem gerado em termos de novas perspectivas? Numa instituição majoritariamente branca, que serve aos interesses da elite paulistana, quando a gente leva o debate do direito dos povos indígenas, puxado por um advogado indígena, a gente tem um impacto em diversas dimensões.

Primeiro, dentro do campo simbólico. Sempre que eu estou nesses espaços, eu faço questão de estar com um cocar, por exemplo. Para além do campo simbólico, a gente tem uma mudança na maneira de pensar o direito, porque o direito é uma ciência dura, positivista, que vai por vezes manter as relações de poder, de dominação, numa lógica ambivalente: certo, errado; condena, libera.

Quando os povos indígenas se apropriam desse conhecimento técnico e promovem debates como esse, causam um deslocamento epistemológico e consequentemente político.

A gente passa a olhar para os mecanismos legais como mecanismos que devem atender a sujeitos que historicamente nem sequer foram reconhecidos como sujeitos de direito.

Como resolver pendências que se arrastam por décadas em territórios, como no seu estado, Mato Grosso do Sul? Sem sombra de dúvida, o que eu elegeria para ser resolvido seria a política de demarcação de terras indígenas. A gente precisa avançar na demarcação de territórios fora da Amazônia Legal.

A política de demarcação é um problema estrutural do país. Isso só se faz com recursos, com pessoas e com vontade política.

Seria fundamental haver um grande pacto dentro da República, no qual fosse reconhecido o que ela fez com os povos indígenas durante séculos: o processo de genocídio, de extermínio, de colonização.

Me parece que o Brasil não superou isso. Como a gente vai mudar um posicionamento político de extermínio, violência, segregação de direitos humanos, não demarcação de terras indígenas se a gente nem sequer se entende como um país que tem origem indígena? É necessário também que haja uma virada cultural e epistemológica na cabeça dos brasileiros.

Como promover essa mudança na mentalidade da sociedade brasileira? Acho que isso passa pelo crivo da política. A política é um instrumento que constitui a subjetividade de um país.

O presidente Lula poderia se pronunciar de maneira pública muito mais incisiva contra o marco temporal. Pensa se o presidente Lula, por exemplo, senta, grava um vídeo explicando o que é o marco temporal, coloca isso em rede nacional? Pensa o impacto que isso teria dentro da narrativa política de formatar, informar as pessoas?

Pensa se o Ministério da Educação dá novas diretrizes para contar a história dos povos indígenas nas universidades, nas escolas?

Garantir que a República seja uma República. Nós não somos uma República de fato. Nós não somos enquanto tiver indígenas morrendo no campo.

Como melhor conter as crescentes ameaças e assegurar a proteção dos territórios indígenas? É fundamental reestruturar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas [Funai], recompor o orçamento da Funai, garantir servidores para aquela instituição, para que tenha pessoal suficiente para fazer os estudos de identificação e delimitação dos territórios indígenas.

Além disso, o retorno de uma política fundamental de gestão dos territórios indígenas, onde os próprios indígenas podem pensar na proteção e no desenvolvimento de seus territórios.

RAIO-X

Maurício Terena, 27

Graduado em direito e mestre em educação, é doutorando em antropologia social na USP (Universidade de São Paulo). Atua especialmente em processos envolvendo a criminalização de lideranças indígenas e conflitos territoriais. É coordenador jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e integrante do Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas, que em março lançou o dossiê “Interfaces da Criminalização Indígena”.

CRISTIANE FONTES / Folhapress

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