SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Bíblia diz mesmo que as mulheres devem se deixar subjugar por seus parceiros?
Sim, essas palavras estão lá. Mas, como quase tudo quando se trata de interpretar os livros sagrados do cristianismo, há mais de uma interpretação para o versículo fartamente usado para justificar visões machistas sobre o papel de cada gênero na sociedade.
O debate emergiu mais uma vez após o deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) evocar no programa Roda Viva (TV Cultura) um trecho de Efésios, uma das obras do Novo Testamento. Versículos bíblicos dali, disse, mostram que “dentro do lar existe uma liderança do homem sobre a mulher”.
“Não importa se você concorda ou não, se eu concordo ou não, importa que está na Bíblia e isso feriria aquela cláusula específica de igualdade de gênero”, afirmou o parlamentar à espera de uma cassação já selada pela Justiça Eleitoral.
O fiel de uma igreja batista tocou no tema após ser questionado sobre declaração prévia contra o PL das Fake News. Em abril, ele afirmou que o projeto de lei dava margem para vetar passagens bíblicas em redes sociais. O post é anterior à manobra de Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL, para blindar discursos religiosos da regulamentação proposta, um aceno à bancada evangélica.
Um dos excertos a perigo, segundo o ex-procurador da Lava Jato, prega que “as mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor”, uma vez que “o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja”.
A apresentadora Vera Magalhães classificou a fala do deputado como um “triplo twist carpado interpretativo”, e choveram acusações de que ele buscava legitimação bíblica para um traço social odioso que, em última instância, pode desembocar no feminicídio.
A ideia de que Deus quis mulheres subordinadas é acionada, inclusive, para lhes negar papéis de liderança em templos cristãos -caso de católicas proibidas de comandar missas e evangélicas excluídas do pastoreio.
Essa leitura se estende por outros cantos bíblicos. Basta voltar a Gênesis, o primeiríssimo dos livros bíblicos, argumentam os arautos da superioridade masculina. Se Deus visse os dois gêneros como iguais, por que criou primeiro Adão, e de sua costela formou Eva?
Foi a mulher seminal, aliás, quem cedeu à tentação da serpente e primeiro mordiscou o fruto proibido, para depois oferecê-lo a seu companheiro no Éden. Como castigo, Deus lhe deu dores no parto, infortúnio estendido a todas as mães do mundo. Também determinou que Eva desejasse o marido e fosse por ele dominada.
Vários grupos religiosos abraçam a perspectiva literalista da Bíblia de que uma boa esposa é aquela que se submete ao comando do seu par macho. Um testemunho dado no Godllywood, projeto da Igreja Universal que diz querer “resgatar valores esquecidos em nossa sociedade”, é um bom exemplo do que estamos falando.
Publicado em 2019 no site da igreja, ele foi escrito por uma fiel que se diz atenta a uma lição passada por Cristiane Cardoso, filha do bispo Edir Macedo à frente do Godllywood. “A senhora disse que o diabo tem investido pesado nas mulheres, para levá-las à solidão, nessa era de empoderamento.”
A autora conta então que era uma feminista que lutava pelos “direitos de igualdade, de ter o mesmo salário e direito à fala”. Mas acreditava o fazer “de forma errada e do lado errado”.
Passou então a orar para o Senhor mudá-la e dar a ela “essas características, ser mais mansa, mais doce e até mesmo mais frágil para ser cuidada”.
Em 2016, Cristiane já havia recorrido a Efésios para transmitir sua visão sobre o papel da mulher casada: “Ser esposa é cuidar do seu marido, pois assim como você deseja um homem que lhe proteja e lhe passe segurança, o seu marido deseja uma mulher que cuide dele. O homem que é respeitado pela mulher tem prazer de cuidar dela, mas o homem que é anulado pela mulher não tem prazer de cuidar dela”.
Para a pastora Elizete Malafaia, a Bíblia “não fala sobre uma submissão cega e burra”, e sim sobre seguir “um homem que lhe proteja e quer o seu bem, não àquele que a maltrate, não respeite”.
Sob a ótica de Elizete e Cristiane, a subalternidade, salvo a que condiciona a mulher a um homem agressivo ou desleixado com ela, é bem-vinda. Quis Deus, afinal, que fossem eles os líderes naturais da família.
Nilza Valéria Zacarias, uma das coordenadoras da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, tem problemas com essa concepção. “Uma leitura honesta” de Efésios, diz, encaminharia para uma interpretação distinta, que destaca a igualdade de gênero.
“Se estou num relacionamento, e o homem me ama como Jesus amou a igreja e por ela se entregou, não vou temer absolutamente nada do que esse homem venha fazer comigo. Quem ama de forma incondicional não faz com que o outro se coloque numa posição inferior.”
Para ela, é preciso avançar até a segunda parte da mensagem bíblica, que diz: “Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela”.
A teóloga Valéria Vilhena também vê “desonestidade intelectual” quando grupos cristãos omitem essa sequência, dando a entender que Deus deseja a submissão pura e simples.
Fundadora do EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), ela critica “uma interpretação rasa, excludente e sem contextualização dos textos bíblicos”, como acusa Deltan de ter feito. Se nos deixarmos levar por uma “cosmovisão medievalista”, afirma, falharemos em reconhecer que a Bíblia foi escrita em certo ambiente social. Fora as traduções produzidas ao longo dos séculos, influenciadas por tempos patriarcais.
Os versículos em questão provocam inquietude também em mulheres conservadoras. Vide uma dúvida recebida pelo influente pastor Antonio Junior: “O que a Bíblia realmente quer dizer sobre a mulher ser submissa ao marido? Às vezes acho que meu esposo está usando [Efésios] para abusar de mim e me humilhar”.
O líder evangélico desaprova pretensos cristãos que se valem de um recorte isolado para cobrar até exigências sexuais da parceira. Mas diz que todos precisam compreender sua missão dentro de um casamento. Se cabe ao homem honrar sua mulher, ela não pode “ser mandona e querer agir como se fosse solteira”.
“Nós, cristãos, não achamos ruim sermos submissos a Jesus, certo? Pois com Ele nos sentimos seguros, amados.” Para ele, é a mesma coisa no matrimônio.
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress