BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Dois slides com expressões como “fechar o cu” e “maratonas de punhetas” apresentados durante evento na Academia da Polícia Federal viralizaram em grupos de WhatsApp de policiais federais e geraram polêmica na corporação na última semana.
A apresentação fez parte do Simpósio de Diversidade e Gênero, Transversalidade, Letramento e Segurança Pública, organizado pela direção da PF e realizado nos dias 24 e 25 deste mês.
A Folha conversou com o psicólogo responsável pela palestra que virou motivo de debates entre servidores. Henrique Campagnollo Fernandes afirma que já esperava a possibilidade de o formato da exposição chocar, mas disse considerar o conteúdo importante para falar sobre as masculinidades.
O conteúdo que viralizou faz parte de uma apresentação acerca das masculinidades com 22 slides. Dois deles circularam nas redes de policiais. O material mostra dados sobre a violência contra a mulher no país, o perfil do agressor e a história dessa violência.
Alguns dos integrantes da corporação que discordam da apresentação disseram reservadamente à Folha que consideram a abordagem equivocada, qualificando os termos de desnecessários. Outros ainda avaliam que o tema não tem relevância para o trabalho da polícia.
Há expressões consideradas constrangedoras, por exemplo, o “dispositivo da eficácia”. O conceito diz respeito à exigência de virilidade imposta aos homens pela sociedade, ou seja, para ser um verdadeiro homem precisaria ser um trabalhador e um “comedor”.
“A apresentação aborda a ideia de que, para serem homens hegemônicos, é preciso combater aspectos que os associam às mulheres, dando origem, muitas vezes, a casos de homofobia e misoginia. O material adverte ainda que a tentativa de se alcançar a eficácia muitas vezes causa sofrimento, insegurança e faz o profissional evitar o apoio de médicos e psicólogos”, diz o psicólogo.
O psicólogo avalia ser comum esse tipo de termo no campo de estudo das masculinidades e até mesmo em conversas do dia a dia entre homens. Mas reconhece que, ao ser apresentado em um evento, provoca estranhamento.
“O ânus, o cu são grandes tabus no universo dos homens, remetem à homofobia. Quando se falam essas palavras automaticamente vem à cabeça o homossexual. Para quem é homem e persegue a hegemonia não se podem mencionar essas palavras, pois é como se soassem como uma ofensa”, disse o psicólogo à Folha.
“A nossa função, enquanto pesquisadores desse campo, não é ofender, expor, minimizar, diminuir e constranger, mas sim promover quebras, reflexões necessárias para a mudança de comportamento”, acrescentou.
O evento foi promovido pela Polícia Federal, por meio da sua Diretoria de Ensino da Academia Nacional de Polícia, e faz parte do Projeto de Transformação Organizacional. As palestras de especialistas e pesquisadores abordaram temas de gênero e raça para compreender o fenômeno da diversidade e refletir sobre o seu impacto nas atividades de segurança pública.
A PF disse, por nota, que o material reproduzido de forma descontextualizada é parte da pesquisa sobre violência contra a mulher e a construção das masculinidades realizada por doutorandos da Universidade de Brasília.
Segundo a corporação, o evento faz parte das 250 ações realizadas pela Diretoria de Ensino em 2023. O simpósio buscou contribuir com a construção de instituições mais inclusivas, diz.
“A Polícia Federal é uma instituição aberta à reflexão sobre suas práticas, sejam no campo de Polícia Judiciária, prestação de serviços administrativos ou na oferta de ações educacionais voltadas ao desenvolvimento das competências afetas às suas áreas de atuação”, disse.
Jacqueline Muniz, antropóloga e professora do departamento de segurança pública da UFF (Universidade Federal Fluminense), avalia que o ambiente das corporações carrega uma ideia de masculinidade e virilidade.
Muniz afirma que estudar gênero, raça e as masculinidades é importante porque a polícia precisa ser a cara da sociedade. Em outros países, por exemplo, a polícia tem profissionais LGBTQIA + para atender a esse público.
Na sua visão, as palavras usadas não deveriam chocar porque é a forma como a população fala no dia a dia. No entanto, pode haver outras formas de mostrar o conteúdo sem citá-las, complementa.
“O ambiente da polícia é de uma masculinidade tóxica, machista que impõe sofrimento ao próprio policial. Ser policial no imaginário significa ser viril, violento, não sentir dor. Isso leva a sofrimento psíquico. Os que mais sofrem com o machismo são os que reproduzem o discurso do machismo”, disse.
Em março, a Diretoria de Ensino da Polícia Federal, recém-criada e comandada por uma mulher, estabeleceu como meta ampliar a participação feminina entre os delegados, peritos, agentes e servidores administrativos, além da inclusão do debate sobre gênero, raça e orientação sexual na formação dos novos policiais.
A delegada Luciana Amaral Alonso Martins disse em entrevista à Folha que o objetivo seria criar condições para que mulheres não tenham que se comportar como homens na corporação para serem respeitadas.
RAQUEL LOPES / Folhapress