TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Cerca de 30 países já descriminalizaram o porte de uma ou mais drogas para uso pessoal no mundo, sem que a medida tenha levado a um aumento exponencial ou a uma queda significativa no consumo dessas substâncias.
Países tão diversos quanto Armênia, Bélgica, Chile, México, Portugal, República Tcheca e Quirguistão criaram modelos igualmente distintos de descriminalização do uso de drogas. E aqui vale destacar que descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal não quer dizer legalizar ou “liberar” as drogas, cuja produção, venda e consumo continuam ilegais.
Descriminalizar o porte para uso pessoal significa que pessoas que consomem drogas não serão processadas criminalmente e presas por usarem essas substâncias, mas estarão sujeitas a sanções administrativas. No Brasil, o julgamento da descriminalização do porte de drogas, iniciado em 2015, deve ser retomado nesta quinta (1º) pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Os modelos de descriminalização que existem pelo mundo se diferenciam principalmente em três aspectos: origem institucional da mudança na política de drogas; presença ou não de critérios objetivos de diferenciação entre usuários e traficantes; e adoção ou não de sanções administrativas e suas variações.
Primeiro, a origem da mudança na política de drogas pode ser formal, estabelecida por lei ou por decisão judicial, ou informal, como é o caso da Holanda, por exemplo.
Lá, ainda nos anos 1970, a Procuradoria decidiu focar esforços do sistema de Justiça criminal no tráfico, e não no uso de drogas, estabelecendo uma política informal de tolerância policial que, na prática, descriminalizou o porte de substâncias para uso.
O segundo ponto, sobre a presença ou não de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes, é talvez o mais crucial dos três. Países como Colômbia, Espanha, Portugal, Quirguistão e República Tcheca estabeleceram quantidades máximas de drogas que configuram uso pessoal -e a partir das quais, portanto, a posse da substância é considerada objeto de tráfico.
Essas quantidades variam enormemente, o que faz toda a diferença no resultado da descriminalização. Quanto mais liberais os limites, menos usuários são criminalizados; quanto mais estritos, potencialmente mais usuários são processados e presos.
Entre países com limites mais liberais está a Espanha, cujos critérios foram definidos pela Suprema Corte na ausência de regulação por lei. Foi estabelecido que o porte de até 100 g de maconha, 2,4 g de ecstasy ou MDMA, 3 g de heroína ou 7,5 g de cocaína deve ser classificado como uso.
Para se ter uma ideia de quanto variam os limites desses critérios de diferenciação, enquanto na Colômbia e na República Tcheca o limite para uso pessoal de cocaína é de 1 g, na Alemanha ele varia de 1 g a 3 g. No Quirguistão, por sua vez, o limite é de 0,03 g -o que, na prática, leva qualquer pessoa que porte cocaína a ser tomada como traficante e processada criminalmente.
Ao lado da Rússia, o Quirguistão tem os limites mais estritos do mundo para diferenciar usuários de traficantes. Também é considerado como uso por lá o porte de até 1 g de heroína, 3 g de resina de cânabis ou haxixe, 2 g de óleo de cânabis e 1,5 g de ecstasy ou MDMA.
No Quirguistão, além de os limites serem mais estritos, as sanções impostas são pesadas e incluem a aplicação de multa cujo valor mínimo é mais de 15 vezes o salário mínimo no país. Como o não pagamento da multa gera um processo, na prática o porte de drogas leva a um processo criminal para boa parte da população.
As diferentes sanções aplicadas nos modelos de descriminalização, assim, também fazem muita diferença no resultado da política.
No exemplo já citado da Espanha, a posse e o consumo em ambiente privado não estão sujeitos a sanção, o que não ocorre nos espaços públicos. A pessoa que use ou porte substâncias dentro dos limites estabelecidos no país está sujeita a multas que variam de 600 a 30 mil euros, à retenção da carteira de motorista e ao confisco de documento que autoriza posse de arma de fogo. Menores de 18 anos podem ter a multa suspensa em substituição a atividades de aconselhamento, tratamento ou reabilitação.
No Chile, onde não há critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes, esses limites são definidos pelo juiz, e as sanções fora da esfera criminal vão de multa a prestação de serviços à comunidade. Já na Venezuela, que também não adota critério para separar usuário de traficantes, a posse e o uso de drogas têm como sanção o tratamento compulsório, estabelecido por ordem judicial.
O caso mais emblemático e bem documentado de descriminalização do uso de drogas é o de Portugal, adotada em 2001 para todas as substâncias. O país instituiu uma série de medidas de redução de danos, critérios de diferenciação de consumo e tráfico e formou comissões multidisciplinares para tratar do uso e abuso de drogas a partir da perspectiva da saúde pública, e não de Justiça criminal. Além disso, investiu na educação de jovens sobre o tema.
Desde então, o país registrou um aumento residual nos índices de prevalência de uso de drogas ao longo da vida, enquanto esses números caíram entre adolescentes e jovens adultos. Estudos apontam para uma redução tanto no número de pessoas presas por crimes relacionados a drogas como nas mortes por overdose.
Nas Américas, segundo dados do Monitor de Políticas de Drogas do Instituto Igarapé, dos 36 países do continente apenas 8 têm o uso de todas as drogas descriminalizado: Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Uruguai e Venezuela. Outros sete países na região descriminalizam somente o uso da maconha.
A região inclui ainda os territórios que legalizaram todo o mercado de cânabis para uso medicinal, recreativo ou comercial, regulando produção, venda e consumo: Canadá, Uruguai e em boa parte dos Estados Unidos.
“Na região, mesmo que a descriminalização das drogas ainda seja incipiente, a adoção de critérios objetivos de quantidade para distinguir o que é consumo do que é tráfico oferece um panorama mais favorável”, avalia a pesquisadora Mariana Alckmin, do Igarapé. Ela aponta que 19 dos 36 países das Américas adotaram esses critérios em suas políticas de drogas.
Esta é a maior crítica ao modelo atual do Brasil, estabelecido pela lei 11.343/2006, a Lei de Drogas, que não definiu esses critérios e abriu espaço para interpretações subjetivas e para o aumento das prisões por tráfico.
Em 2005, antes da implementação da Lei de Drogas, 14% dos presos do sistema carcerário brasileiro eram acusados ou condenados por tráfico de drogas. Em junho de 2022, esse percentual era de quase 30%.
Estudos apontam que muitas dessas pessoas foram presas com quantidades pequenas de drogas. O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos.
FERNANDA MENA / Folhapress