SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O agravamento exponencial da crise em Kosovo, o minúsculo Estado criado a partir de uma intervenção militar da Otan contra a antiga Iugoslávia em 1999, trouxe o embate entre a Rússia e a aliança militar do Ocidente para dentro da esfera da União Europeia.
Com efeito, a ameaçadora letra Z, símbolo da invasão russa da Ucrânia, desembarcou nos Bálcãs enquanto dezenas de soldados da Otan ficavam feridos durante conflitos nunca antes vistos com a minoria sérvia étnica do norte de Kosovo. O Z foi pichado em carros da aliança e ornava barricadas sérvias.
Para Vladimir Putin, é um prato cheio, pois abre uma cunha problemática para a Otan, expondo os erros sequenciais do Ocidente na região dos Bálcãs, que remontam ao trágico desmantelamento da Iugoslávia nos anos 1990, do qual Kosovo foi um dos capítulos mais agudos.
A crise atual vinha em ritmo de sístole e diástole há meses, mas explodiu na segunda (29), quando a minoria sérvia do norte kosovar viu prefeituras da região serem ocupadas por oficiais da maioria albanesa do país. Isso porque os sérvios não participaram do pleito local, o que levou a protestos violentos.
Como a segurança no país largamente depende dos 4.000 integrantes da KFOR, a força da Otan na região, sobrou para o contingente húngaro e italiano: cerca de 30 feridos, alguns em estado grave, inclusive atingidos por tiros. Do lado sérvio, foram 50 vítimas, nenhuma morta até aqui.
Ato contínuo, o presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, colocou suas Forças Armadas em alerta máximo e exigiu que o governo de Pristina implemente um acordo mediado pela União Europeia em 2013 segundo o qual o norte de Kosovo, que faz fronteira com o país, tenha um status diferenciado para os sérvios locais -com garantias como cotas na administração.
Vucic já foi e voltou em posições de proximidade com o Ocidente, mas é largamente visto como um aliado de Putin, e a retórica do Kremlin é de apoio irrestrito aos seus irmãos eslavos da Europa.
Se tudo isso parece provinciano demais, é preciso voltar no tempo. Em 1999, após ver a Croácia e a Bósnia deixarem a antiga Iugoslávia em meio a um banho de sangue, a Otan resolveu colocar em prática o conceito algo ilusório de “intervenção humanitária” para encerrar os embates entre Belgrado e a maioria albanesa de Kosovo.
Lançou com isso um ataque inédito em sua história, àquela altura, contra um Estado soberano, que era a Iugoslávia. Já enfraquecido, o regime de Slobodan Milosevic aquiesceu, sob bombas ocidentais, e a KFOR tratou de ocupar a então província de Kosovo -que, em 2008, viraria um país independente, de forma limitada.
A Rússia, no auge da impotência dos anos de Boris Ieltsin e sob o impacto da crise de 1998, nada pôde fazer em favor de seus aliados em Belgrado. Os países alimentam laços culturais, linguísticos e religiosos, que se expressam de formas às vezes temerárias, como se viu nas Copas de 2018 na Rússia e de 2022, no Qatar.
Putin chegaria ao poder, primeiramente como premiê, dois meses depois do fim da guerra em Kosovo. Ele e seus aliados nunca perdoaram a Otan, denunciando o caráter expansionista da intervenção, que abriu a porta para que o território viesse a pleitear a entrada na União Europeia.
Do lado albanês, 90% dos 1,9 milhão de kosovares, a visão era outra: Belgrado estava disposta a empregar os métodos de limpeza étnica que apoiou nas guerras civis em seus antigos territórios. O risco parecia evidente, e o Ocidente não queria voltar a ser acusado de deixar massacres correrem soltos -matando no processo mil militares iugoslavos e talvez o dobro de civis.
Seja como for, Kosovo virou um fato consumado, com um grau baixo de interesse no Ocidente após sua independência. Com isso, o acordo de 2013 nunca foi objeto de pressão ativa por implementação, por exemplo. Agora, com Putin naquilo que chama de guerra por procuração com o Ocidente nos campos ucranianos, a grave confusão no norte do país joga a seu favor.
Com efeito, surgem relatos de que a União Europeia está pressionando o premiê kosovar, Albin Kurti, a tirar o pé do acelerador no embate e aceitar os termos do acordo de 2013. Tudo o que os europeus não precisam é de um conflito secundário em sua área direta de influência ou, pior, uma ação militar da Sérvia com apoio russo.
O Kremlin declarou seu apoio aos sérvios nesta quarta (31), e no mínimo Putin ganha palanque para sua versão da história. No máximo, pode ver a Otan enfrentar uma escalada militar sob sua direta responsabilidade.
IGOR GIELOW / Folhapress